Missas do Parto: nove dias ou tradição elástica?
Entre a devoção mariana e horários cada vez mais flexíveis, a regra das nove novenas já não é absoluta
As Missas do Parto são uma das tradições natalícias mais emblemáticas da Madeira e do Porto Santo, únicas em Portugal pela forma como conjugam devoção mariana, música popular e convívio comunitário. Estão tradicionalmente associadas aos nove dias que antecedem o Natal, numa clara alusão aos nove meses de gestação da Virgem Maria, realizando-se, na maioria das paróquias, entre 15 e 23 de Dezembro. Contudo, a ideia de que estas celebrações correspondem sempre, sem excepção, a nove novenas rigorosamente enquadradas nesse período não resiste a uma análise mais atenta da história e da prática actual.
Na sua forma considerada mais genuína, as Missas do Parto são celebradas de madrugada, antes do amanhecer, e distinguem-se pelas cantorias tradicionais de Natal, entoadas ao som de violas, rajões, pandeiretas e castanholas. Após a celebração religiosa, já com o dia a nascer, segue-se o convívio nos adros das igrejas, onde se partilham sandes de carne de vinha d’alhos, canjas, bolo de mel, licores caseiros e, muitas vezes, cacau quente. Este momento de confraternização, que mistura o sagrado e o profano, continua a mobilizar milhares de madeirenses e a marcar o início dos dias natalícios.
Os registos históricos confirmam que se trata de uma tradição antiga, mas também diversa e longe de ser uniforme. Dados publicados pela Direcção Regional da Cultura indicam referências às Missas do Parto na Madeira desde pelo menos 1685, com registos na Ribeira Brava, em São Vicente, no Convento de Santa Clara e na Misericórdia do Funchal. Já nos séculos XVII e XVIII surgem relatos de conflitos entre o carácter religioso das missas e as festividades que lhes estavam associadas, com denúncias de cantorias e comportamentos considerados “fora de horas decentes”. Essa tensão entre norma litúrgica e prática popular acompanha a tradição desde os seus primórdios.
Hoje, essa flexibilidade é ainda mais evidente. A Missa do Parto tornou-se uma tradição adaptável às realidades locais e às comunidades. Há paróquias que mantêm as nove celebrações, outras que realizam apenas algumas ou mesmo apenas uma Missa do Parto, e casos em que o número ultrapassa o simbolismo original. Um exemplo é a Paróquia da Serra de Água, que este ano iniciou as celebrações a 11 de Dezembro, somando um total de 11 Missas do Parto, distribuídas por vários sítios da freguesia e com horários distintos, que vão da madrugada ao final da tarde.
Também os horários deixaram de ser uniformes. Se a tradição aponta para missas ao romper da aurora, actualmente existem celebrações após o amanhecer, em horário vespertino ou mesmo nocturno, havendo paróquias que combinam diferentes momentos do dia para abranger mais fiéis. A elasticidade estende-se, assim, não apenas ao número de missas, mas também ao calendário e aos horários.
Em teoria, o simbolismo das nove missas mantém-se como referência central. Na prática, porém, não constitui uma regra absoluta nem obrigatória. A Missa do Parto, fiel ao seu espírito comunitário e identitário, foi-se moldando ao longo do tempo às circunstâncias, às necessidades locais e às mudanças sociais. Na Madeira, mais do que um calendário rígido, continua a ser um encontro de fé, tradição e convívio, onde o essencial permanece, mesmo quando o número de celebrações e os horários deixam de seguir à letra a tradição dita ‘original’.
Assim, afirmar que as Missas do Parto são sempre nove novenas, sem excepção, celebradas entre 15 e 24 de Dezembro, é incorrecto. O que existe é uma referência simbólica e tradicional, amplamente respeitada, mas aplicada de forma elástica, adaptada às comunidades, às circunstâncias locais e à própria evolução da prática religiosa ao longo do tempo.