Os inquéritos parlamentares só podem incidir sobre entidades públicas?
A Assembleia Legislativa da Madeira, uma vez mais na história da instituição, está abalançada na realização de uma comissão parlamentar de inquérito, desta feita ao estabelecimento de ensino ISAL – Instituto Superior de Administração Línguas.
A comissão nasceu por iniciativa do PSD, na sequência da retirada da acreditação da instituição, o que a impede de abrir novos cursos. Uma decisão de que o ISAL já recorreu para a justiça.
Antes da constituição da Comissão de Inquérito, a Assembleia, com o poder da maioria PSD/CDS, tentou uma audição com os responsáveis do ISAL, o que passaria por ouvir uma deputada do PS, Sancha Campanella.
O PS sempre tem acusado o PSD de estar motivado por objectivos políticos, o que voltou a acontecer nesta quarta-feira, com o deputado Gonçalo Leite velho a considerar que a Comissão não tem legitimidade, uma vez que o ISAL é uma entidade privada.
Mas, será mesmo que a legitimidade parlamentar fica em crise pelo facto de se tratar de uma entidade privada?
A verificação da veracidade da afirmação será realiza principalmente com recurso ao que diz a Lei e ao histórico das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI). Ouvimos, igualmente, uma pessoa com vasta experiência no que respeita a CPI, que aceitou dar a sua interpretação, mas que solicitou para não ser identificada.
A Constituição da República prevê comissões (permanentes e eventuais) e estabelece que as comissões parlamentares de inquérito gozam de poderes de investigação próprios das autoridades judiciais (naquilo que não lhes esteja constitucionalmente reservado).
Neste momento, os regimes jurídicos das comissões parlamentares de inquérito da Assembleia da República e da Assembleia Legislativa da Madeira são muito semelhantes e consagram o princípio constitucional referido.
O regime jurídico respeitante à Madeira diz que “os inquéritos da Assembleia Legislativa têm por função vigiar o cumprimento da Constituição, do Estatuto Político-Administrativo da Região e das leis, e a apreciação dos actos do Governo Regional e da Administração Regional.”
“Os inquéritos parlamentares podem ter por objecto qualquer matéria de interesse público relevante para o exercício das atribuições da Assembleia Legislativa”.
É uma formulação praticamente igual ao do regime da Assembleia da República. O critério central em ambos é o interesse público relevante, ajustado às respectivas atribuições (regional e nacional).
Em ambos os parlamentos, as CPI dispõem de poderes de investigação próprios das autoridades judiciais (salvo o que for constitucionalmente reservado), podem convocar qualquer cidadão e solicitar informações/documentos a entidades públicas e privadas; valem regimes de coadjuvação das autoridades judiciárias/Órgãos de Polícia Criminal e regras da lei processual penal para depoimentos/justificações.
“As comissões parlamentares de inquérito gozam de todos os poderes de investigação das autoridades judiciais”; “As comissões têm direito à coadjuvação das autoridades judiciais e administrativas, nos mesmos termos que os tribunais.”
Como se verificou, o foco determinante é o interesse público, nada havendo que obste a que o objecto incida sobre uma entidade privada. Basta que esse interesse público exista e que fique explícito/demonstrado. Aliás, são muitos os casos nacionais em que instituições privadas foram alvo de comissões de inquérito por existir e até ser óbvio o interesse público (Grupo BES, BPN, BANIF, Novo Banco, Rendas excessivas, SDM (na altura maioritariamente privada / Concessão da ZFM…).
Ainda que não sendo objecto de verificação neste fact check, vejamos mais um aspecto. Uma das questões que se poderiam colocar na Comissão de Inquérito ao ISAL é se estará nos poderes de fiscalização da Assembleia Legislativa da Madeira, considerando que o ensino superior é tutelado/acreditado/fiscalizado pelo Estado Central. Nesta perspectiva haveria dúvidas. No entanto, o ensino superior em geral é algo de interesse público do território onde a instituição funciona (não necessariamente tem sede) e, no caso concreto, foi até alegado o futuro dos alunos da instituição.
Por tudo o que aqui foi explicado, avaliamos como falsa a ideia de que a legitimidade de uma comissão de inquérito parlamentar fica em causa quando e se o respectivo objecto for uma entidade privada e somente por isso.