Tempo de sul
Aquele bafo quente entrava casa adentro e amolecia as bolachas esquecidas em cima da mesa da cozinha. E nada parecia estar mesmo seco
A humidade abatia-se sobre nós como uma maldição nos dias em que o tempo virava a sul e o nevoeiro ficava a rondar a copa dos eucaliptos e dos pinheiros. A minha mãe praguejava o clima e a hora de Inverno e corria pelo quintal, a meio da chuva, para salvar os sapatinhos daquele tempo endiabrado que trazia calor e aguaceiros fortes e até a casa parecia transpirar como se fosse um ser vivo.
Aquele bafo quente entrava casa adentro e amolecia as bolachas esquecidas em cima da mesa da cozinha. E nada, em lado algum, parecia estar mesmo seco. Nem o cabelo, nem a roupa ou o chão da cozinha, mas as aulas esperavam por mim, no turno da tarde no Girassol e era preciso encontrar o que vestir dentro do guarda-fatos onde, por essa altura, havia mais espaço do que roupa.
Lá dentro havia t-shirts, saias de Verão e o que sobrara do Inverno anterior, em lã e outros tecidos próprios para outras temperaturas. E debaixo do armário, arrumados aos pares, os sapatos brancos de tiras e os da chuva, feios e resistentes, os únicos que sobreviviam de um ano para outro. O que era bonito ia e vinha do sapateiro até não ter conserto, assim como a roupa que, do uso, perdia a cor e o formato. Às vezes, a minha mãe decidia que não sobrava outro destino a não ser trapo de limpeza.
O quadro não era o melhor e ainda faltava muito para o Natal, altura em que as tias, a prima e a minha mãe abriam os cordões das bolsas e tiravam de lá notas de cinco contos para comprar o que gostasse. A meio de Outubro era preciso muita imaginação para não parecer um extraterrestre nas aulas e no intervalo, quando se ia ao liceu travar conhecimento com quem estava no pátio.
Eu tinha umas calças de ganga Mako Jeans, umas sapatilhas ‘Le Coq Sportif’ e três camisas unissexo que partilhava com o meu irmão, mas isso não chegava para todos os dias da semana. Para parecer diferente, havia dois lenços indianos e umas camisolas de tricô, encomendadas pela minha tia Conceição às amigas do hotel onde limpava quartos. Eu gostava muito da roxa, dava com um batom no mesmo tom. As cores não me favoreciam, acho que combinavam melhor com uma festa de Halloween, mas era moda em 1987.
E era a primeira vez que me deixavam usar maquilhagem fora de casa, o que me fazia quase adulta. Além de dois batons, tinha também um perfume, desodorizante, um creme para a cara e um creme Nivea para o corpo. Os anos 80, mesmo os meus lá no Laranjal, não ficariam completos sem o gel New Wave e a espuma para dar um jeito ao cabelo escadeado. Um tesouro de moda e estilo que tinha custado dinheiro e tempo a juntar.
Se soubesse usar tudo aquilo com inteligência ninguém ia sequer reparar que vinha do Laranjal, de uma casa onde as paredes transpiravam, lá em cima, numa curva de estrada que as pessoas tinham dificuldade em localizar. Foi mais ou menos por essa altura que passei a descer do autocarro na penúltima paragem, ali na Avenida do Mar, que dava para atravessar a cidade, sem precisar de me desviar das cargas e descargas do mercado. Acho que me sentia bonita, com aquelas roupas, aquele corte de cabelo.