A Crise do Ensino passa pelo Vírus da Desvalorização Vocacional
A recente divulgação da carência de docentes nas áreas de Filosofia, História e Português deve ser encarada não como um mero episódio pontual, mas sim como um alerta inequívoco de que as políticas de incentivo e atração de novos quadros são manifestamente insuficientes e superficiais.
É inegável a legitimidade da insatisfação que permeia a classe docente. O histórico de cortes salariais, o prolongado congelamento de carreiras e a severa perda de tempo de serviço constituem um quadro de profunda injustiça. Na Região Autónoma da Madeira (RAM), esta situação só começou a vislumbrar uma ténue esperança de recuperação em 2018, persistindo ainda limitações, como as quotas de progressão entre alguns escalões e as conhecidas “ultrapassagens”. Contudo, se é certo que o Estado tem a inadiável obrigação de restaurar a dignidade financeira da profissão, a dignidade vocacional deve ser zelosamente salvaguardada pelos próprios professores. É inaceitável que, na sua maioria, em vez de serem os “mestres”, acabem por ser obstáculos que desencorajam jovens atraídos pelo mesmo amor às áreas que se propõem a lecionar.
Esta carência revela-se ainda mais preocupante e sintomática quando se observa que as áreas mais afetadas são precisamente aquelas que a RAM tem sistematicamente ignorado a um nível estrutural.
O problema é sistémico. Para além dos únicos cursos de formação de docentes oferecidos pela Universidade da Madeira (UMa) serem a Licenciatura em Educação Básica, o Mestrado em Ensino de Matemática no 3º Ciclo do Ensino Básico e no Secundário, o Mestrado em Educação Pré-Escolar e Ensino do 1º Ciclo do Ensino Básico e o Mestrado em Ensino de Educação Física nos Ensinos Básico e Secundário; verifica-se a notória ausência de um foco na formação superior onde a Faculdade de Artes e Humanidades da UMa padece de áreas tão próprias e relevantes como História e Filosofia. Tratar-se-á de um desdém social enraizado? Não estaremos perante um desinteresse que nasce na base social e encontra a sua perpetuação no silêncio institucional do topo? Até porque, mesmo, no panorama do Ensino Secundário, verifica-se um persistente desinteresse e desvalorização de quem opta pelo Curso Científico e Humanístico de Línguas e Humanidades.
A dimensão pessoal desta falha estrutural não me é indiferente. Tal como tantos outros jovens da região, vi-me na obrigação de partir para frequentar uma licenciatura em “Letras”. Hoje, encontro-me no Mestrado em Ensino de Filosofia, ironicamente uma das áreas com maior carência. Fiz esta escolha contra os padrões sociais da Madeira e, sublinho, contra o gosto de vários (embora não todos) professores que, movidos pela sua frustração, me aconselharam abertamente a não o fazer. Agora, a partir deste Mestrado, deparo-me com uma infeliz realidade. Ao partilhar unidades curriculares transversais com colegas de ensino Básico e/ou Secundário, vejo que os casos de jovens que tiveram de lutar contra o desinteresse social e o desincentivo docente se repetem nas mais diversas áreas do conhecimento. O problema não é apenas o desapego às Humanidades; a desvalorização da profissão por parte de muitos professores é um vírus que se propaga, ameaçando não só a Filosofia, a História e o Português; mas também a estabilidade e o futuro do ensino em muitas outras disciplinas essenciais.
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