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A herança de Abril (de 1974) e o protesto

Acredito (...) que os nossos jovens já não estão dispostos a aceitar o regresso da censura

1. O dia 25 de abril de 1974 tem um significado e valor diferente para cada um de nós e para cada geração – lembro que mais de metade da atual população portuguesa já nasceu após os 48 anos da ditadura de António de Oliveira Salazar e Marcello Caetano e em democracia (e com liberdade), e este número naturalmente aumentará, desaparecendo, infelizmente, os que conceberam e viveram aquele instante histórico, ficando apenas a memória –, pois ele influencia e estimula as nossas vidas de maneira diferente. Por outras palavras, aquela madrugada de um dia (quinta-feira) “inicial inteiro e limpo” (Sophia de Mello Breyner Andresen) diz algo a todos nós (é uma espécie de marca identitária ou “sinal na pele dos portugueses”), e as suas repercussões/realizações são hoje vividas por todos, mas cada um à sua maneira particular.

2. Para a famosa pergunta “Ouve lá, onde é que tu estavas no 25 de Abril?” – da autoria do já falecido jornalista e escritor Armando Baptista-Bastos, mais tarde eternizada pelo grande humorista e artista Herman José, no programa da RTP 1, “Herman Enciclopédia” – , a resposta que eu e toda geração Z (os que nasceram entre 1997 e 2012) proferiríamos era de que “não, não estivemos lá…”, o 25 de Abril não foi uma experiência para nós, mas é uma “memória contada”, aquela que vivi(emos) na pele dos nossos pais ou avós, mas também de todos os outros que nos falaram dela e presenciaram aquele momento histórico de mudança em Portugal e nas suas ex-colónias. A este propósito, fez precisamente 50 anos, no passado dia 9 de Abril, que o meu pai foi destacado para a Guiné-Bissau, um país tropical na costa atlântica ocidental de África, incontestavelmente o cenário mais difícil da guerra colonial portuguesa. No entanto, uma ação de sabotagem ao navio “Niassa”, no Cais de Alcântara, em Lisboa, quando ia partir para Bissau com um contingente de soldados, atrasou a partida para o dia 11. (Tratou-se de uma iniciativa das Brigadas Revolucionárias que avisaram a PSP do porto de Lisboa, uma hora e quinze minutos antes, para que o navio fosse evacuado.) Não houve feridos nem mortos. Cinco dias depois, o jovem soldado de infantaria com a especialidade de atirador (Regimento de Infantaria n.º 16 - Évora), finalmente desembarca no Porto de Bissau e seguiu para o Campo Militar de Cumeré, nos arredores da capital, onde quase sempre o general António Spínola dava as boas-vindas às tropas que chegavam. Porém, nesta altura o comandante-chefe das Forças Armadas portuguesas na então colónia da Guiné-Bissau, era já Carlos Alberto Idães Soares Fabião, aquele que viria a ser o último Governador desta província portuguesa.

3. Tal como eu, também as gerações mais novas com que diariamente trabalho não viram o antes, o durante nem o imediatamente após o 25 de Abril de 1974. O que sabem da Revolução do 25 de Abril estão em imagens que passaram na televisão ou recolheram de alguns testemunhos orais, muitos deles contados na primeira pessoa (familiares e amigos destes). Dizem, sobre este assunto, que o nosso atual sistema de ensino (básico e secundário) quase que omite o 25 de Abril: “os programas são demasiado extensos, dizem alguns professores” ou “a escola não tem que falar de política”, referem outros… e por isso, para várias gerações de estudantes, o 25 de Abril nunca foi para além de um feriado onde se ficava em casa ou se ia para a rua com os amigos, felizes porque livres, e ao mesmo tempo ignorantes dessa liberdade pela qual tantos lutaram e deram a vida.

4. Em Portugal, se a geração de Abril está a desaparecer – o que é inevitável –, também podemos dizer que “esmoreceu” ou “minguou” a vontade de passar o testemunho (e virtuosa ‘herança’) de Abril aos mais novos protagonistas (e figurantes) do futuro. Atrevo-me mesmo a dizer que uma certa classe política (e socioeconómica), durante algum tempo evidenciou algum sentimento de “cansaço”, para não aludir tédio, diante a data (os ideais e o significado) da Revolução dos Cravos, mas a transformação (metamorfose, que para o sociólogo e influente pensador Edgar Morin é uma palavra bem mais rica) destes últimos 50 anos é incomparável na nossa história, e os jovens que já nasceram em liberdade, reconhecem-na e não vão adormecer ao som das palavras e narrativas dos novos aspirantes a líderes carismáticos e populistas, mestres da mentira e propaganda.

5. No presente, muitos dizem que é essencial que a história não se repita! Mais: que em democracia saibamos não devolver o poder a um qualquer líder idêntico ao existente a 24 de abril de 1974. Acredito que a ingerência do tempo poderá desfocar, mas não apagar tudo o que foi conquistado e que os nossos jovens já não estão dispostos a aceitar o regresso da censura (que até já existe nas redes sociais, por exemplo, quando o “Instagram” deixa uma imagem ofuscada e na legenda aparece “conteúdo sensível” seguido de, “tem a certeza que pretende visualizar?”) ou a interdição de coisas/ações que hoje em dia consideramos absurdas como, por exemplo, o uso de isqueiros sem uma licença para tal, a demonstração de afetos em público, a venda de certas bebidas sem (ou com) álcool, a inibição de direitos civis e políticos às mulheres, tais como votar, serem juízas, diplomatas, militares ou polícias… e para trabalhar no comércio, sair do país, abrir conta bancária ou ingerir contracetivos, a obrigatoriedade de pedir autorização aos maridos (não esquecendo que ganhavam quase metade do salário pago aos homens, não lhes era consentido o divórcio e as enfermeiras e hospedeiras eram proibidas de se casar). Lamentavelmente, a ignorância (ou pura idiotice) leva ainda algumas pessoas a dizerem que “no tempo de Salazar é que era bom!”. Ora, hoje, nem que seja para se poder dizer mal da democracia (e da liberdade), já valeu a pena os militares terem planeado e executado o 25 de Abril!

6. 50 anos depois da Revolução dos Cravos, Portugal é agora outro e bem diferente de 1974. Vivemos num país onde se é livre – e, curiosamente, onde num programa de televisão intitulado “Grandes Portugueses” se escolheu, por voto dos telespectadores, Salazar como o maior português de todos os tempos (2007)… e justamente num período em que nem sequer se escutava a palavra “crise” e onde os escândalos/descalabros políticos não tinham a abundância e proporção do presente. Além disto, um país onde nos dias que correm é tolerável ser-se contra a democracia (e liberdade), em que se pode voltar a enunciar princípios fascistas, onde está de regresso o descontentamento e protesto (apesar de um crescimento económico acima da média da União Europeia e uma dívida já abaixo dos 99% do PIB) e em que há (ainda) o respeito (e cumprimento) por direitos e liberdades inalienáveis de que muitos os cidadãos não abdicam para si, mas que contestam relativamente a outros. Um país que continua atrasado, polarizado e assimétrico, onde a pobreza atinge quase 2 milhões de cidadãos e é persistente (e tende a transmitir-se entre gerações), onde a corrupção é endémica e abrange praticamente todas as áreas da Administração central, local e empresas públicas (nos diferentes setores); um país onde a participação política e eleitoral é baixa e a maioria dos políticos não aposta numa efetiva mudança de rumo, isto é, em imprimir reais melhorias na vida dos cidadãos, mas governa apenas em função do calendário eleitoral e tem como principal objetivo ganhar as próximas eleições. Nas palavras de uma jovem de apenas 17 anos que frequenta o 12º ano, “está fora do nosso pensamento e horizonte abdicar dos direitos e liberdades conquistados há 50 anos e que nos permitem um estilo de vida à medida de cada um, que nos garantem a diversidade plural, a crítica independente, a convivência tolerante com opiniões e gostos diferentes”. A conquista da liberdade (e democraci a) é permanente. Ela(s) nunca estiveram imunes a ataques/ameaças, pelo que se as quisermos conservar, será preciso cuidar e reforçar todos os dias os valores de Abril!