DNOTICIAS.PT
Crónicas

A neta do Francisquinho do Meia

O desgosto não era permitido às crianças pequenas, explicou-me antes de correr pelo terreiro

Eu cresci entre jardins e quintais e passei férias a correr no encalço do meu irmão que, por esse tempo, comandava um pelotão de miúdos da vizinhança e fazia expedições fazenda adentro atrás de ninhos ou tentava apanhar rãs enlameadas nas poças da ribeira. A fazenda, os quintais e os jardins eram nossos. Ou melhor eram da minha mãe e das minhas tias e tinham sido todos do meu bisavô e do meu avô, o Francisquinho do Meia, um senhor velhinho que mal conheci. Lembro-me de o ver sentado num banco baixo, agarrado a um bordão. Morreu antes de fazer 80 anos com um ataque de tosse, ali mesmo, nos braços da minha mãe e da minha tia Teresa.

Eu tinha cinco anos e mandaram-me avisar a vizinha, uma senhora grande, mãe de muitos filhos e que me repreendeu por estar a chorar. O desgosto não era permitido às crianças pequenas, explicou-me antes de correr pelo terreiro para acudir à Teresinha e à Celina, as duas ainda atordoadas pelo que sabiam que estava a acontecer. O meu avô ainda respirava quando o meu irmão chegou da escola, vinha triste. Para mim era um velhinho que agonizava na cama; para ele era o avô que lhe tinha ensinado a ser um ás em todas as coisas importantes.

No pião, nos carros de camas, a caçar lagartixas e fazer joeiras com roncos e caudas de trapos. E se ele reinava naquele pelotão de miúdos devia àquele avô bondoso, que fora dele durante oito anos. Nesse dia, antes de voltar a vestir a pele do Duarte destravado, ficou parado e calado nos pés da cama, enquanto o meu pai vestia o sogro. O meu pai fazia sempre a parte mais complicada, a que ninguém queria e eu lembro-me de que isso nos enchia de orgulho, tínhamos um pai corajoso, forte, sem medo de nada, nem da morte ou dos mortos.

A casa, sempre animada pelas vozes das mulheres, caiu num silêncio e nós fomos empurrados para rua, para longe da dor, do choro e velório, que se fez na sala e durou a noite inteira. Nós dormimos no chão, em camas improvisadas e debaixo do olho da minha prima Ana, que era quem nos protegia e defendia de todas as complicações. E na manhã seguinte apareceu uma prima que era costureira e tirou as medidas das minhas tias e da minha mãe. Todas fizeram duas saias pretas e cumpriram o luto como era exigido na altura: um ano de preto pelo pai e pela mãe. Se fosse o marido seria a vida inteira.

As minhas tias e a minha mãe cumpriram a tradição sem falhar um dia, luto era luto e aquele senhor que, para mim era um velhinho, fora novo e bom pai, tinha sido um avô simpático para o meu irmão e para os meus primos. E, de todos, eu é que ia crescer sem saber o que era isso, o carinho e o amor de um avô ou de uma avó, não teria a cumplicidade, aquela devoção, apenas a fazenda, os jardins e os quintais onde, de certa forma, o meu avô continuou por muitos anos, que aquilo era tudo do Francisquinho do Meia.