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Crónicas

As tias solteiras e católicas

As missas e as procissões também faziam parte do meu papel de sobrinha mais nova e cedo percebi que, para mim, as férias da Páscoa incluíam uns dias de cerimónias religiosas, quase todas tristes, onde se falava muito da morte de Jesus

Eu sou a mais nova de uma família de mulheres, uma parte delas solteiras e católicas, e isso fez de mim a pessoa que ia a todos os lugares quando queriam ter companhia. Fui ao médico e passei horas em consultórios, quase sempre de pé já que as cadeiras eram para os adultos e visitei doentes em hospitais, a maioria vizinhos que, por causa dos pulmões ou de outro órgão qualquer que deixava de funcionar, acabavam numa enfermaria. E lá íamos, eu calada, não fosse falhar uma fala qualquer e receber um sermão mais tarde, em casa, longe da vista de estranhos.

As minhas tias nunca esqueciam um deslize como andar a correr pelos corredores do andar ou a dificuldade em dar o lugar a uma senhora na sala de espera do consultório do dr. Miguel Mendonça, onde havia sempre menos cadeiras do que doentes e era duro manter-me de pé, encostada à parede e com tantos olhos em mim. “Esta menina é sua?” E lá diziam que era sobrinha, tinha só 14 anos e via-se o espanto. Podia lá ser, com aquele tamanho todo, talvez fizesse bem uma dieta. “Pobrezinha vai parecer velha cedo”. Eu devia sorrir a estes e a todos os outros comentários se quisesse evitar aquelas promessas de “a tua mãe não te dá ensino, mas comigo vais aprender”.

As missas e as procissões também faziam parte do meu papel de sobrinha mais nova e cedo percebi que, para mim, as férias da Páscoa incluíam uns dias de cerimónias religiosas, quase todas tristes, onde se falava muito da morte de Jesus, aquela que nos resgatou a todos do fogo eterno do inferno. A ideia era confusa para as nossas cabeças e o meu irmão e eu passávamos parte da semana santa a fazer perguntas, mas isso era em casa. Em público, na igreja, a melhor receita era estar calada, cara voltada para o altar e com a atenção no padre.

E sobre as pessoas, que enchiam os bancos da igreja, pairava uma tristeza, um sentimento que não se conseguia explicar bem. Lá fora, na rua, os jardins estavam cheios de flores, o calor levava as minhas amigas da escola para o Lido, enquanto eu estava ali, no Laranjal, onde a tradição continuava quase como no tempo da minha mãe e das minhas tias. Ao almoço havia inhame e atum na Sexta-feira Santa e, em casa, a única coisa que a minha mãe se permitia fazer depois do meio dia era tratar no jardim, dizia que não contava como trabalho.

A televisão ficava reduzida a concertos de música clássica. O luto católico tirava a telenovela da programação e filmes só os da história de Cristo ou de Moisés e era tão austero que eu esperava pelo Domingo de Páscoa e pela Ressurreição, o dia em que se arrumava o jejum, a tristeza por dever e aquelas cerimónias religiosas de morte e de mistérios da fé demasiados pesados para a minha cabeça de miúda. A seguir podia aproveitar os dias de férias que sobravam, dormir até mais tarde e não me preocupar com mais uma missa ou mais uma procissão.

Em casa, no meu quarto, à luz da mesa de cabeceira podia ler os meus livros, pensar livre do peso dos desígnios complicados e ser eu, uma miúda como as outras e aproveitar as férias para ir à praia, ao cinema, tomar um refresco numa esplanada e, quem sabe apaixonar-me, nem que fosse só de olhar. Eu, por causa daquelas regras das minhas tias quando ia com elas a todo lado, levei muitos anos até perder o medo de falhar uma fala ou de falar sem ficar com a cara quente e vermelha, quase a explodir de vergonha.