Crónicas

Mesmo que tenham passado 50 anos

O meu pai trabalhava quase todos os dias da semana nas obras e a minha mãe só não bordava ao sábado e ao domingo. O dinheiro que alimentava a gaveta da cómoda vinha daí

A engrenagem – o mecanismo que nos mantinha alimentados, lavados e saudáveis – parecia mexer-se por si, uma magia que fazia aparecer dinheiro dentro da gaveta da cómoda e financiava os sacos de fruta, verdura e carne do talho que o meu tio Humberto trazia do mercado aos sábados, mais as vezes em que a minha mãe entrava no supermercado Própovo antes de apanhar o autocarro das cinco à quarta-feira. Eu tinha mais ou menos essa impressão.

Uma mão invisível remexia os poderes ocultos do universo de maneira a fazer nascer flores, feijão, maracujás e tantas ameixas que, no fim, caíam de maduras. Não havia ervas e as estacas aguentavam uma chuva imprevista ou o vento. Os muros, quando cediam à água, voltavam depressa ao lugar e as levadas nunca entupiam. E, no galinheiro, cabiam várias gerações de galinhas de muitas cores e tamanhos. Uma parte vivia à solta e, volta e meia, lá se descobria um ninho com dúzias de ovos.

Não era que não soubesse. O meu pai trabalhava quase todos os dias da semana nas obras e a minha mãe só não bordava ao sábado e ao domingo. O dinheiro que alimentava a gaveta da cómoda vinha daí. Já o milagre agrícola dependia do senhor que a minha tia Teresa pagava para fazer a fazenda, era como se designavam os trabalhadores do campo: os homens que faziam a fazenda. E a deixavam cultivada, limpa e viva com a água que alagava os poios.

A mão invisível era o trabalho de todos os dias, constante e dedicado que, em conjunto, nos mantinha alimentados numa casa que podia não ser um modelo de design, mas era nossa e confortável. A minha mãe, quando a reserva da gaveta aumentava, lá comprava umas cortinas novas ou uma jarra para as flores da época. Por dentro, e tal como nós, a casa tinha poucos adornos, era austera, sem santos, nem sequer uma Nossa Senhora de Fátima havia.

A minha mãe mandava-me todos os domingos à missa, que isso era sinal de educação e princípios e decência, mas nunca cedeu à adoração de santos e velas. E nunca percebi se era por ter medo de incêndios ou se por ser como era: uma pessoa sem adornos, de uma franqueza desarmante. Também era caótica, mas ao domingo à tarde, quando limpava e arrumava tudo, a nossa casa mostrava o lado acolhedor e a minha mãe dava-me o braço no regresso da casa das minhas tias e ria-se, contava histórias e revelava o lado caloroso.

Falava dos sonhos que tivera e dos que ainda tinha. Talvez um dia se pudesse construir um repuxo com peixes no jardim como tinham as casas ricas. Ou quem sabe fazer uma casa de dois andares, quem sabe se não me sais uma doutora e ganhas muito dinheiro. E talvez o teu irmão escreva livros, que tem tanto jeito. Era um instante, um momento que iluminava a semana inteira antes de se esconder atrás da tal engrenagem que obrigava a que tivesse pressa para tudo.

A magia que mantinha a nossa vida obrigava-a a ralhar connosco, a zangar-se com o meu pai. E a isso juntava o fardo de cozinhar almoço e jantar e bordar muito para ter um salário e dinheiro que pudesse chamar seu. A minha mãe tinha os poderes de todas as mães, de todas as mulheres que cuidam e acarinham os filhos, os pais, os novos e os velhos, que fazem das casas da infância um lugar a onde se quer voltar sempre, mesmo que tenham passado 50 anos.