Crónicas

Amizade só assim

Não há em nós forma mais bonita de amar do que nos oferecermos aos que sentimos que fazem parte de nós

Nós somos aquilo que construímos. O que fazemos, as escolhas que tomamos e as influencias de quem nos rodeia. Uns mais outros menos. Somos muito pouco donos e senhores das nossas decisões. A coisa vai-se fazendo de forma natural e pronto. Não há um plano, não há resumos nem tão pouco um mapa. Somos todos diferentes e isso é bonito assim. O que serve para mim pode não servir para ti e vice versa. É por isso que na mesma família, com os mesmos valores, pode sair um empresário de sucesso, irmão de um criminoso ou batoteiro. Cada um de nós vai-se construindo nas mais pequenas coisas. Umas dominamos, a maior parte não. Mas achamos que sim para não entrarmos em pânico. Com o decorrer da vida comecei a gostar de pescada cozida, a tomar especial atenção aos sapatos e apaixonei-me por África. Ninguém me determinou, foi acontecendo e não me fui impondo. Ainda assim, nos gostos e vontades podemos sempre determinar o que fazemos ou o que afastamos de nós. Na amizade não. É errada a frase repetida tantas vezes de que “os amigos são a família que escolhemos”. Nós não escolhemos nada, nem os amigos, eles vão aparecendo conforme as nossas atitudes e maneira de estar.

Esta semana, uma grande amiga que passa por uma fase particularmente difícil por conta do falecimento do pai, enviou-me algumas frases e vídeos profundos que fui assimilando. Porquê? Porque a amizade é o conceito mais leve e puro que podemos ter. Passamos a vida atrás do amor. Há quem nunca o ache mas não se preocupe com isso. Há quem não precise do sexo, da atração, da química, basta-lhes construir uma ideia que a sociedade determinou como certa. Casar, ter filhos. Muitos não olham a meios. Certo está que mais cedo ou mais tarde isso reflete-se na relação. Talvez por isso hajam tantos divórcios. Hoje em dia, sobretudo as mulheres, chegam a uma certa idade e começam a panicar. Só não querem ficar para tias, não querem perder a oportunidade de ter filhos e colocam sobre si e sobre os outros esse peso imenso e tantas vezes enganador. Mas também há quem encontre o amor, não são só más noticias. Pessoas que se gostam, se respeitam e que conseguem olhar para a floresta ao invés da arvore e perceber que todas as relações têm problemas e muitas vezes a solução não está em romper com tudo e partir para outra.

A amizade é toda uma outra forma de amor. É seguro e permanente. Muitas vezes não damos por ela. São as pessoas que estão lá, sempre estiveram e estarão. É quase adquirido. Usamos quando nos sentimos sozinhos e quando encontramos alguém fugimos um pouco. Nem achamos que é errado, para nós é natural quando começamos a namorar afastarmo-nos um pouco dos que estão ali sempre para nós. Mas a vida não é assim. Nós aprendemos aos poucos que esses que nos levantam, os que nos acrescentam e nos iluminam são a nossa forma mais bonita de amar. Uma amizade a sério é um código que não se decifra. É uma relação que não depende de da volatilidade, que se alimenta de momentos pequeninos, de risadas permanentes e de um bem estar único. Muitas vezes só damos conta desse amor quando ele desaparece. Não há em nós forma mais bonita de amar do que nos oferecermos aos que sentimos que fazem parte de nós. Sem essas coisas complicadas do casamento, da imposição de um laço, da obrigação de estar. É um amor seguro e tranquilo, que não nos obriga mas que nos liberta e nos estabiliza.

O amor de uma amizade é uma coisa única, mesmo que por vezes só consigamos dar conta quando estamos na merda. Fugir das amizades verdadeiras ou não conseguir construi-las é ficar incompleto para sempre. Aquela palavra que aconchega, o ombro amigo, o estar ali sem dizer nada ou estar para nos ouvir a dizer as maiores alarvidades do mundo. Quando tudo falha a amizade permanece. Com falhas, com omissões, com uma forma de estar leviana que por vezes magoa. A amizade não se escolhe ao contrário do que se diz. Constrói-se, rega-se, alimenta-se dia após dia. Com uma conversa, com um suporte ou motivação. Não damos por ela mas levanta-nos vezes sem conta. É simples, é genuína e leva-nos para tudo o que queríamos conquistar. A tranquilidade e os momentos perfeitos que só damos valor quando olhamos para trás. É a forma mais bonita de sermos.