Crónicas

A lição da cidade grande

A solidão pesou-me quando se juntaram em grupos, com os pais e os irmãos, os tios mais chegados e os avós

As fotografias que tirei à pressa naquele dia foram parar a envelopes e misturaram-se com o entulho das gavetas da casa do Laranjal. Antes de as enviar para o esquecimento mostrei à minha mãe e o meu pai ficou comovido. Ter uma filha finalista na universidade valia muito para aquele homem de meia idade que, todos os dias, metia a mão na massa e levantava paredes nas obras.

Nem um, nem outro estiveram lá, na missa campal no estádio 1º de Maio. Nem sequer o meu irmão ou a minha prima, os dois mais habituados a viagens de avião e quartos de hotéis, mas há 30 anos apenas os ricos iam de fim de semana a Lisboa. E eu fui sozinha, com a pasta e as fitas debaixo do braço. Nesse dia valeram-me os amigos, são eles que lá estão, nas fotografias.

A solidão pesou-me quando se juntaram em grupos, com os pais e os irmãos, os tios mais chegados e os avós. Às vezes penso na estranheza de me verem ali sem família e de como me aguentei sem chorar. E tinha motivos, ninguém levaria a mal. O curso estava a acabar, eram os últimos dias de estudante em Lisboa, mais uns meses e estaríamos todos a viver vidas diferentes, longe uns dos outros.

Mas eu tinha prometido e não ia falhar e muito menos por tão pouco como ter uma fotografia com o meu pai, a minha mãe e o meu irmão no dia da benção das pastas. A promessa fora feita uns anos antes, nos jardins da Gulbenkian e no primeiro dia de aulas. Nesse dia fugi da faculdade, atravessei a avenida e fui chorar às escondidas para um banco de cimento.

Um jardineiro viu-me - ali escondida, assustada, com os olhos vermelhos e enfiada num anaroque que não parecia meu – que me veio perguntar se precisava de ajuda, se era grave, se havia necessidade de chamar a polícia. A saudade de casa e a solidão não são casos de polícia e respondi que não. Levantei-me envergonhada, o senhor não ia perceber que me sentia esmagada pela cidade grande, que me incomodava o frio e era assustador estar assim, só, muito só.

Eu tinha moedas no bolso, podia entrar numa daquelas cabines telefónicas – e havia muitas nesse tempo espalhadas por toda a cidade -, mas não era solução ligar para casa a chorar, a lamentar as saudades quando de Lisboa tinha apenas uma experiência de dias e depois de, na Madeira, a família se ter virado ao contrário para financiar a viagem, o quarto e os estudos.

Aquele era o meu sonho. Tinham-me falado da liberdade, das amizades que se forjavam naqueles anos e de todas as possibilidades que surgem quando se vai para a cidade grande, mas quando se conta uma história é natural que se omita detalhes como aquele de ficar aos 18 anos num lugar que não se conhece, onde todas as caras que passam na rua são desconhecidas.

A solidão que isso traz é devastadora e nem sei bem onde fui buscar forças para a enfrentar, mas terá sido certamente por não ter tido outro remédio. E por Lisboa ser um lugar de muitas possibilidades, um lugar onde era um ser exótico, cuja apresentação se limitava a ser da Madeira. O Laranjal, a mãe bordadeira e o pai pedreiro, a fazenda com anonas, abacates e maracujás eram parte do exotismo.

Não começámos bem, eu e a cidade grande, trouxe-me alguns desentendimentos por causa do sotaque, houve muitos dias de solidão, mas foi lá que me fiz gente. E fazer-se gente é perceber de onde se vem e enfrentar o que a vida traz. Lisboa foi a minha primeira lição.