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Ainda do “teto de vidro”

No mês passado fiz uma reflexão sobre a presença de mulheres no mundo da música clássica e o invisível “teto de vidro” que ainda limita o progresso e a proporcionalidade da inclusão destas mulheres nas orquestras sinfónicas. Recebi muitos comentários positivos mas intrigou-me mais um comentário repudiante que veio duma pessoa que estimo, um músico que conheço desde criança. Afirmou que o passado histórico não reflete em absoluto as estatísticas de hoje em dia, que a tendência de hoje em dia é completamente oposta e que isso até se estende à representação proporcional de maestrinas. Será verdade?

Ora vejamos: é verdade que me referi em primeiro lugar a duas orquestras de qualidade mas também de tradicionalismo extraordinários: a Filarmónica de Viena e a Filarmónica de Berlim.

Mas há dados recentes que comprovam a minha afirmação e até a alargam para compositoras e maestrinas. No que diz respeito a instrumentistas orquestrais, um estudo, não de 50 anos atrás mas sim de 2019, analisou 40 das maiores orquestras da Europa e Estados Unidos. Verificando instrumento por instrumento, chegou à conclusão que, para além da harpa (que por alguma razão continua “no feminino”) em que 87.8% dos executantes são mulheres, apenas o violino e a flauta transversal demonstram uma ligeira predominância das mulheres (entre 51.8% e 57.9%). De resto, a percentagem continua a diminuir, com dois instrumentos na faixa dos 40%, um na dos 30%, três na dos 20% e cinco com menos de 20%. Apenas em duas destas orquestras o trombone principal era uma mulher, e apenas uma tinha uma tubista principal.

A maior percentagem de mulheres nas orquestras registou-se no Reino Unido (44%) e na América do Norte (40.1%), enquanto as orquestras de outros países europeus ficaram-se por 36.6%. Para agravar este desequilíbrio, apenas 16.8% de mulheres ocupavam as cadeiras “principais” das secções e 35.18% as de assistente principal.

No Reino Unido, calculando a média dos dados de 2018-2019, nas últimas quatro décadas, a representatividade geral das mulheres nas orquestras foi cerca de 40% inferior da presença das mulheres na força laboral geral.

Já no que diz respeito às mulheres-compositoras, um outro estudo recente, de 2020/2021, baseado em dados de 100 das maiores orquestras de 27 países, também comprova a minha afirmação. Apenas 11.45% da totalidade dos programas destas orquestras incluiu alguma obra duma mulher. E apenas 747 (5%) das 14,747 obras compostas foram compostas por mulheres (das quais 1.1% por mulheres afro-americanas ou asiáticas!). Em Portugal, das três maiores orquestras, apenas a Gulbenkian incluiu algumas (4!) obras compostas por mulheres – entre as 305 programadas (1.31%).

Finalmente, no que diz respeito às maestrinas, menos de 10% de todas as orquestras norte-americanas são dirigidas por mulheres, e na Europa, nas maiores orquestras, menos de 6%. Três anos atrás, da lista de 100 maestros de topo, nomeados por um site especializado conhecido, constavam 8 mulheres. Talvez alguém possa chamar a isso um progresso, considerando que sete anos antes, da mesma lista, constava só uma!

Portanto, mesmo que haja pessoas que prefiram não reparar ou que queiram ver a situação com óculos cor-de-rosa, a situação real ainda é longe de se poder chamar equilibrada e saudável. Para o bem da música, da arte, da sociedade e do nosso futuro, convém manter os olhos abertos. Pelo menos para não perder todos os momentos emocionantes enquanto o teto se parte.