Crónicas

A culpa

As perguntas eram tantas, voltavam sempre pela Páscoa que, quando tínhamos, 8, 10 anos fomos proibidos de questionar a fé católica e os seus dogmas

Eu cresci católica num tempo e num lugar em que isso obrigava a ir à missa todos os domingos e dias santos. As crianças frequentavam a catequese até fazer o crisma e ninguém, em perfeito juízo, ousava dispensar os filhos do baptismo, que no Laranjal aos bebés garantia a entrada no céu antes de começar a gatinhar. A vida, de uma certa maneira, organizava-se em torno da igreja e, sobretudo, de acordo com o calendário religioso.

No centro desse calendário estava a Páscoa, esse período sombrio onde tudo gravitava em torno da morte e da culpa. Entre o início da Quaresma e o Domingo de Páscoa os rituais lembravam a quem pudesse andar esquecido de que aquele suplício de Jesus na cruz era, de facto, responsabilidade das pessoas, de todas as pessoas. Das que tinham apedrejado Cristo enquanto subia o Calvário às que, como eu, nasceram quase 2000 anos depois e viviam no Laranjal, um ponto insignificante do globo.

Lembro-me que este detalhe – a minha mãe costumava dizer que era o Diabo a testar-lhe a fé - fazia muita confusão. Aborrecidos com a regra que proibia a carne às sextas-feiras – e isso incluía os papo-secos com fiambre e os ovos mexidos com chouriço – o meu irmão e eu fazíamos perguntas, muitas perguntas. O que tinha isso a ver com o pecado e a obrigação de ser bom? E éramos culpados de uma morte que acontecera no início dos tempos? E de que maneira o sacrifício daquele homem pregado na cruz nos iria salvar?

Nós sabíamos bem o que lhe tinha acontecido. A tragédia era lida na Sexta-Feira Santa, com a igreja a meia luz, e todos os anos repetiam que tínhamos responsabilidade e acrescentavam que, além de culpados, éramos pecadores e tão terríveis que nascíamos já assim e com o peso do pecado original. Essa era uma herança do Adão e Eva, quando os dois, ainda a viver no jardim do Paraíso, desobedeceram às ordens divinas. A teoria era difícil de engolir, podia um filho, um descendente tão distante ser culpado?

As perguntas eram tantas, voltavam sempre pela Páscoa que, quando tínhamos, 8, 10 anos fomos proibidos de questionar a fé católica e os seus dogmas. A minha mãe não queria discutir, nem argumentar e muito menos levantar dúvidas sobre a sua própria fé, mas a verdade é que, no Laranjal, na nossa casa, a religião era sobretudo ritual, uma forma de se organizar o quotidiano e que colidia com o mundo moderno que chegava pela televisão. Adão e Eva não tinham sido os primeiros homens e os historiadores mostravam que os evangelhos tinham sido escritos muitos anos depois de Cristo morrer.

Para nós a missa, a catequese, as procissões e as festas na paróquia eram parte da nossa socialização, da nossa construção cultural, mas faltava o clique para que fosse uma crença, uma fé incondicional. Aos 18 anos, deixámos a igreja. O meu irmão assumiu mais cedo o seu ateísmo, eu fiz um percurso mais suave e lento, foi como um divórcio sem traumas. Não guardo ressentimentos, mas sei que há, entre aquela mensagem de amor pelos outros, um lado sombrio, um poder que domina as cabeças, que as enche de culpa e as reduz à insignificância.

E se for uma mente jovem, fragilizada pela condição social e psicológica, fica então em situação de risco, de presa à mercê destes predadores que a igreja do poder atrai, do poder sobre alma, sobre o que se pensa, como se pensa. A mesma igreja que, na minha infância, dizia que todos eram pecadores e culpados - do acontece hoje e do que aconteceu há 2000 anos a Cristo e até do que fizeram Adão e Eva no princípio dos tempos. E depressa se percebem os números das vítimas do abuso sexual e do silêncio a que se remeteram durante anos.

Carregaram a culpa e a vergonha que não eram suas. Os que conseguiram denunciar esbarraram na impunidade e nas teias de cumplicidade que esse poder sombrio gerou, no encobrimento das hierarquias e tudo o resto que se ficou a saber nas últimas semanas.