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Crónicas

As lantejoulas

Aos 16 anos teria sido a sorte grande dançar até de manhã; aos 50 comer uma canja num lugar tranquilo parece-me um privilégio

O último do ano era sempre na casa da minha tia Alice, uns metros acima no caminho e com vista para a cidade, os navios no porto e, ao longe, os números luminosos para ver entrar o ano novo nas nossas vidas. E era uma festa bonita, os meus tios esmeravam-se para receber as visitas. Em cima da mesa do quarto da televisão havia uns pratinhos com azeitonas, quadradinhos de queijo e broas e do armário vinham bebidas e sumos.

A minha tia Alice ligava todas as luzes da casa, que uma noite não fazia mal e ainda impressionava os turistas, que na terra deles não havia coisa assim como o nosso último do ano. O número de convidados variava, mas, enquanto vivi no Laranjal, fui lá que vi o tempo avançar, ao ritmo do fogo-de-artifício e com o abraço do meu pai e do meu tio Humberto e, no fim, uma canja que, invariavelmente, queimava o céu da boca.

A berma do caminho enchia, chegavam pessoas de carro e em furgonetas, traziam comida e bebida e celebravam onde havia lugar para parar, dali até ao Jamboto. E para festejar não carecia de vestido de lantejoulas, maquilhagem ou penteados de cabeleireiro. Isso era para a gente da cidade, as pessoas da alta que iam aos bailes no hotel Girassol onde a minha tia Conceição trabalhava a limpar quartos. Lá por cima a roupa especial era um casaco quente, aquele que quase só saía uma vez do armário e era para ver o fogo-de-artifício.

A televisão mostrava as pernas longas das bailarinas do Folies Bergère depois do fogo, enquanto a minha tia Alice insistia que se comesse mais umas sandes de galinha, que aquilo não era para ficar ali, nem para se estragar. E aí pela uma da manhã, quando se começava a piscar os olhos com sono, a minha mãe dava-me o braço e lá descíamos o caminho, com o nosso casaco quente, o nosso traje do fim do ano.

A festa continuava lá por baixo, na baixa e nos hotéis. As miúdas da escola teriam certamente histórias para contar, de namoros começados com o ano novo, de danças e olhares românticos. E claro de roupas e vestidos de veludo ou de lantejoulas, de brilhos e sapatos de cerimónia. Se iam ao cabeleireiro de propósito não sei, mas talvez fossem, faziam parte de outro mundo. No Laranjal era diferente, só se ia para fazer a permanente ou para cortar.

As histórias dos bailes que se contavam no intervalo maior nos primeiros dias de Janeiro depois das férias enchiam-me a cabeça de fantasias. E se eu fosse, se a minha mãe me deixasse ir como seria o meu vestido, os sapatos, o cabelo e o batôm, alguém iria dar por mim? Eu acreditava que sim, que se saísse no vestido preto comprido, todo cosido de lantejoulas e um cabelo cheio de caracóis como era moda nos anos 80.

E todos os anos a festa voltava a ser em casa dos meus tios, entre o quintal com vista para a cidade e o quarto da televisão para comer broas e azeitonas e beber Brisa Maracujá e ver televisão. Nunca fui a uma festa, nunca precisei de outra roupa além de um casaco quente para subir os metros que separavam as duas casas. Aos 16 anos teria sido a sorte grande dançar até de manhã; aos 50 comer uma canja num lugar tranquilo parece-me um privilégio.