Crónicas

Voltar a casa

Podia telefonar para a casa e dizer que o ano estava feito; podia preparar-me para um Verão tranquilo no Laranjal

Lembro-me de escrever a morada e o número de telefone, lembro-me das risadas no bar da faculdade e de termos prometido que íamos todos escrever cartas e mandar postais. Tinha 19 anos e respirava de alívio no ar quente de Lisboa, podia telefonar para a casa e dizer que o ano estava feito; podia preparar-me para um Verão tranquilo no Laranjal. E a conversa, entre piadas tolas, continuou, fiquei com uma dúzia de endereços, com números de Lisboa e de moradas em aldeias, algures, nesse país que os amigos fariam o favor de me mostrar nos anos do curso.

A aventura estava apenas no princípio. Não fora simples, nem fácil mudar-me para um lugar a mil quilómetros de casa, com o mar pelo meio. Num dia estava a dormir na minha cama de sempre, noutro estava a aterrar na cidade grande com os conselhos e as preocupações da minha mãe a ecoar na cabeça. E eu, que tivera tantas dificuldades em fazer conversa no intervalo das aulas no liceu, tinha vários papelinhos com endereços dobrados dentro da carteira e um lugar na mesa do bar da faculdade.

Nem eu conseguia entender, mas sentia que, pela primeira vez, fazia sentido: o meu cabelo comprido, a minha roupa surrada com a minha timidez e o gosto por livros e filmes. E talvez ajudasse ter um quê de exótico agarrado à pele. As minhas histórias falavam de uma ilha de dias amenos o ano inteiro, tinham o sabor da fazenda, o aconchego das casas madeirenses, mas falavam também desse desejo de ver o mundo, tão intrínseco aos ilhéus. Talvez fosse tudo isso, talvez tenha sido apenas um acaso.

E se a minha mãe soubesse que o pior era o calor, aquele ar quente que me agarrava ao chão enquanto caminhava para o metro. Lisboa começava a ficar deserta. As famílias preparavam-se para ir de férias: os endinheirados para o Algarve, a maioria para a terra do pai ou da mãe. Eu tinha ainda de fazer a mala, mas antes queria olhar uma última vez para tudo: o metro a parar, a despejar pessoas e a engolir outras, num vaivém anónimo e libertador. Lisboa também podia ser muito solitária e, por isso, era reconfortante saber que havia um lugar à minha espera.

A casa do Laranjal onde a minha mãe, de certo, andava numa roda viva para ter tudo limpo e pronto, sem esquecer um bolo de iogurte para o pequeno almoço. O meu pai haveria de tomar banho para ir com o meu tio Humberto ao aeroporto, no velho Opel, que era grande e tinha lugar para a mala. Talvez o meu irmão fosse, de calças de ganga e t-shirt branca a imitar os filmes do James Dean. E manhã cedo viria a tia Alice para ver se estava bem, se tinha comido. As outras tias trabalhavam, mas haveríamos de estar todos juntos no domingo e a vida voltaria a ser como era, quase como era antes.

Eu não era bem a miúda que saíra uns meses antes para ir estudar. Tinha crescido, tinha amigos a quem escrever durante as férias, mas continuava a ser dali, do Laranjal e não conseguia imaginar melhor lugar para passar o Verão.