Crónicas

As meninas

A adolescência não foi o meu melhor momento, passei-a como vem nos livros e sentindo-me estranha e desadequada

Aos 14 anos o mundo é um lugar que não nos pertence, é dos outros. Ou pelo menos parecia-me, enquanto via o meu irmão descer os degraus da entrada para ir acampar. O meu irmão acampava desde os 12 anos; eu não fazia ideia do que era passar uma noite numa tenda ou tomar banho numa cascata de água muito fria. As meninas não acampavam, as meninas podiam bordar, fazer tricô ou croché, mas deviam ser recatadas, ter mão para cuidar das flores e cozinhar. Acampar não estava na lista.

E não estava na lista sair, nem que fosse para uma matiné no Optmist ou para um refresco na esplanada depois do cinema. Aos sábados havia o quintal para varrer, era preciso mudar a roupa de cama, limpar o pó e a minha mãe não conseguia fazer tudo. Não me lembro de ter outro programa, além de afastar vasos, varrer folhas e sonhar com o dia em que a vida seria de facto minha. Aquela, a que me calhava viver, parecia um colete de forças, bem apertado por regras e preconceitos.

Quando havia dúvidas se ficava bem ou não, se era próprio ou adequado, a minha mãe resolvia-se por não permitir, assim não havia falatório e ela aguentava bem o meu desespero, as minhas lágrimas, a minha raiva. Lembro-me de ter planeado fazer aeróbica – estávamos nos anos 80 e uma Jane Fonda vestida de licra prometia uma silhueta de modelo -, mas foi por água abaixo. Nunca se tinha ouvido falar de tal coisa. A minha mãe e as minhas tias andavam sempre tão ocupadas com os nós cegos das preocupações para acrescentar fosse o que fosse que as pudesse mortificar ainda mais.

Se eu fosse, teriam de preocupar-se com as viagens, com as horas de ir e vir e desdobrar-se em explicações aos vizinhos. E os vizinhos já viam como extravagância o meu gosto pelos livros e o desejo de tirar um curso. A minha mãe tinha pouco para a troca: eu não sabia fazer bolos, mal sabia pegar na agulha e não gostava de arrumar ou varrer. Fazia tudo sob ameaça: “ou limpas ou não te deixo ir à praia; ou varres ou não te compro o vestido para a festa da paróquia”. Imagino que a minha mãe, pessoa que gostava de regras, não quisesse mais complicações.

E, de uma certa maneira, nem eu gostava de ser como era. A falta de jeito, sem talentos que pudessem ser apreciados, eu via como as outras raparigas deslizavam a caminho da vida adulta com gestos suaves, tão arrumados como os cadernos e sem hesitações. Elas sabiam olhar para os rapazes e trazê-los embeiçados para conversas que os faziam voltar ainda mais interessados. Sabiam o que falar, o que vestir e como estar, mesmo que fosse no muro que dava para o campo de futebol onde os rapazes jogavam à bola.

Enquanto a perfeição passava por mim, eu fazia por ser invisível, mesmo com os meus 10 quilos a mais, as roupas dos saldos e feita de retalhos da alfaiataria do meu tio Humberto. Doía menos não ser vista, não receber convites para festas de anos, custava menos não ter uma vida do que enfrentar a minha mãe, as minhas tias e o colete de forças de regras onde me tinham enfiado só por ser menina, só para não trazer complicações.

A adolescência não foi o meu melhor momento, passei-a como vem nos livros e sentindo-me estranha e desadequada, ainda que, por debaixo de todas essas camadas de medos e inseguranças, não tenha desistido de sonhar: um dia o mundo também seria meu, haveria de ter um lugar onde coubesse a miúda desajeitada e estranha, que varria o quintal todos os sábados.