Crónicas

Amores perfeitos

Falar em vender é como arrancar um bocado, ia doer muito e, lá no fundo de nós mesmos, sabemos que o caminho até aqui é a nossa linha de fuga

Ter recebido de herança uma casa velha mudou--me. No último ano corri lojas de ferragens, troquei ideias sobre tintas, massa para madeiras e para as paredes com os funcionários que me atenderam. E alarguei os conhecimentos sobre plantar alfaces ou o que fazer com a avalanche de ameixas, laranjas e anonas que carregam as árvores quando chega a época.

Não posso dizer que é uma experiência libertadora. Na maior parte do tempo sinto-me incompetente. Não faço ideia qual é a altura de plantar, nem quantas vezes devo regar a horta, nem as flores, ainda que ambas floresçam entre um manto de ervas daninhas. A minha esperança é que a vida cumpra o ciclo e, de caminho, possa colher umas alfaces ou um alho francês.

Sei que me falta o método, o tempo e o jeito de pensar de um agricultor, mas não desisto. Esta casa, este quintal, a fazenda e as galinhas são mais do que isso são tudo o que o me deixou o meu pai e a minha mãe, são parte do que me liga ao meu irmão. Todos os dias falamos por causa da casa e do cão, os nossos dias organizam-se para comprar ração, alimentar os animais, discutir a escala.

Um dia eu, outro ele. Não é sempre bom, muitas vezes é uma preocupação. Se há vento, se choveu muito e temos de partilhar as contas, tratar do que se estraga. E ainda assim falar em vender é como arrancar um bocado, ia doer muito e, lá no fundo de nós mesmos, sabemos que o caminho até aqui é a nossa linha de fuga.

Se correr mal, se houver voltas ou reviravoltas esta é a casa da infância e está de pé. Há as memórias, mas este é sobretudo um lugar nosso e ter isso, essa certeza, sossega-me. Ainda que, por enquanto, seja um fardo, uma canseira e a prova de que percebo pouco das coisas das fazenda e ainda mesmo das orquídeas e das outras flores que, apesar da minha inabilidade, continuam florir.

E muitas vezes de formas exuberantes e estranhas como os amores perfeitos que nascem em chão de cimento, nos muros, nos degraus da escada e sem qualquer interferência. As coisas da fazenda e do quintal dependem pouco de mim para existir.