Crónicas

Sobre a Autonomia

A Autonomia tem tudo para poder encetar o caminho da autossuficiência

1. Já o escrevi, por diversas vezes, e volto a fazê-lo para ficar bem claro: a Autonomia não questiona a soberania.

Na sua essência, a Autonomia é um modelo de partilha de poder. Questões que tenham a ver com defesa, negócios estrangeiros, representação do Estado (exceto se delegada), segurança interna e justiça, são aquelas que definem a unidade do Estado/Nação. Tudo o resto, da saúde à segurança social, dos impostos à economia, do ensino ao mar, etc., são poderes que têm de ser delegados na Autonomia, aumentando a responsabilidade dos seus órgãos e de quem os gere.

Assim, o Estado, como um todo, não perde a sua integridade territorial, nem soberania, nem as Autonomias perdem a sua identidade, idiossincrasias e interesses.

Ainda hoje, a estrutura continua apoiada no Tratado de Vestefália, de 1648, onde se estabeleceram os princípios que norteiam a definição de Estado e as regras internacionais de relacionamento entre estes. Podemos, mesmo, dizer ser este o momento fundador da soberania moderna, tal qual a conhecemos. São três os princípios em que esta se apoia:

a) nada está acima dos órgãos do Estado;

b) não são permitidas interferências externas na jurisdição de um Estado;

c) os Estados são os actores principais na cena política internacional.

O tratado define também dois outros conceitos de grande importância: territorialidade e governabilidade. O primeiro tem a ver com a definição de fronteiras. A governabilidade define que a dimensão política, cultural, económica e social só se realiza dentro dessas divisas.

Soberania, territorialidade e governabilidade, são os três pilares onde assenta o Estado moderno. Claro que falamos do modo como os Estados se relacionam e quais os seus principais normativos de relacionamento. O Estado é muito mais do que isto.

Para falarmos de Autonomia, que não tem nada a ver com autodeterminação, temos de ter em conta que esta não pode pôr em causa nenhum dos fundamentos acima descritos.

Tendo isto acertado, definamos que caminhos, na minha opinião, podemos trilhar.

Na Autonomia temos de identificar, com facilidade, a transferência de poderes, que descentraliza o Estado, e está concordante com os princípios da subsidiariedade.

São, assim, dois os trajectos que podemos seguir: o do Federalismo ou o da Autonomia. Tanto um como o outro permitem-nos empoderar a cultura, o social, o económico e o político. Seremos, sempre, os responsáveis pelo caminho que escolhermos seguir. Sem depender de ninguém e mantendo a nossa portugalidade, da qual a madeiridade é parte integrante e inseparável.

Praticamente desde sempre, desde o início em 1976, vivemos aquilo que alguém definiu como o “contencioso da Autonomia”. O que representa este conflito? Aonde nos tem levado e o que ganhamos com ele, para além do sempre presente “inimigo externo”? Pouco mais é do que uma rivalidade infantil, nos dois sentidos. Todo o conflito acaba sempre com um dos lados a perder. Não há vitórias repartidas. Não há empates. As perdas serão sempre ineficiências do sistema, a maioria das vezes, completamente desnecessárias. O que devíamos procurar, são consensos. A Autonomia tem de ser muito mais do que um desígnio regional, tem de ser, também, nacional. Nunca o conseguiremos com este constante clima de guerra.

O Estado é, naturalmente, centralizador. Está-lhe no sangue. Só isto potencia, e muito, o enfrentamento das partes. Logo, o que necessitamos é obviar o confronto sem sentido.

A maioria dos portugueses não tem ideia do que são as Autonomias insulares, como funcionam e a que fim se destinam. Vêm-nas com sumidouros de dinheiro do Estado. Não é assim, como sabemos. A Autonomia tem tudo para poder encetar o caminho da autossuficiência. Isto tem de ser explicado.

Realizemos um exercício. Comecemos por acertar que o mesmo se desenrola em quatro fases, onde a primeira (onde já não estamos) é a centralização. Os mais velhos recordar-se-ão disso, pois era o modelo que vigorava até 1976. A partir dessa fase, começámos a construir a Autonomia, ao conseguir o seu reconhecimento na Constituição, e com a eleição e tomada de posse dos primeiros órgãos autonómicos. O momento da “instalação” da Autonomia. Foi a fase em que Ornelas Camacho presidiu ao Governo Regional.

A terceira fase começa com a tomada de posse do primeiro governo de Alberto João Jardim. Começa o “contencioso da Autonomia”. O inimigo externo, como justificação de tudo o que pode correr mal. Essa fase, vai até a um marco de extrema importância na nossa história: a aprovação, em 1999, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira. Desde a aprovação da Constituição até este momento, mediaram 23 anos. 23 anos para se conseguir dar um passo fundamental.

Daí para cá, entrámos na 4.ª fase: o marasmo autonómico.

E o que poderia ter sido realizado nestes últimos 23 anos, de 1999 até hoje? Muito.

Há um factor de grande importância, muitas vezes negligenciado, no pensar estas questões que têm a ver com a nossa individualidade. Aquilo que o cidadão pensa e pode ser resumido a uma pergunta: o que eu ganho com isso? Esta é a questão fundamental.

A Autonomia é um processo dialéctico, onde à tese se opõe a antítese e ambas as partes têm de atingir a síntese. A não ser assim, não chegaremos a lado nenhum. A Autonomia não é um fim, é um processo. Um processo onde factores como a atractividade, eficiência, eficácia, emoção, história, cultura, economia, satisfação, envolvimento, empenhamento cidadão, participação, etc., têm de fazer parte do todo.

Não sendo eu um adepto do tal de “contencioso”, reconheço que o centralismo, que compõe o Estado, tentará sempre fazer com que a transferência de poderes e capacitação de estruturas de segundo nível, não se realize.

Uma Autonomia que o seja de facto e não só “de jure”, não pode ser dependente. Tem de procurar cortar dependências. A “monocultura” do turismo, não pode ser a nossa única e maior fonte de receitas. E, tirando o mar que temos muito, mas que não é, ainda, uma solução tecnologicamente viável, não encontramos outra via que não seja a da fiscalidade. Urge avançar, o mais rápido possível e com passos assertivos, para o sistema fiscal próprio com fiscalidade reduzida, como factor de atractividade para as empresas que aqui se fixem, vindas do exterior, e de desenvolvimento para as nossas, que já cá estão. Os ganhos podem ser enormes, potenciando a criação de riqueza para todos. E, pasme-se, podemos começar já a dar os primeiros passos nesse sentido. É uma questão de vontade: a redução do IRC para as empresas em 30%, deve ser acompanhada por um reescalonamento do IRS aplicando-se-lhe, também, a redução máxima de 30% prevista na lei; o mesmo com o IVA, fazendo com que o escalão máximo seja reduzido para 16%; terminar com a aplicação do adicional de 15% nos combustíveis que nos foi imposto pelo PAEF; ainda nos combustíveis, aplicar o IVA somente ao produto comprado, acabando com a dupla tributação deste imposto. Se a isto somarmos benefícios fiscais, que terão de ser estudados de modo a não irem contra as determinações europeias, podemos, em pouco tempo e por decisão nossa, ter uma Autonomia mais rica e atractiva, que fixe empresas, que irão gerar mais e melhor emprego.

A falta de imaginação é o único limite da Autonomia.

2. Sou só eu que acho estranho que, ao fim de 46 anos de Autonomia, tão pouco, entre nós, se tenha produzido no que diz respeito a estudos e artigos sobre a Autonomia? Não sou um especialista. Gosto de pensar as coisas e, para o fazer, procuro informação para depois poder concluir. Não falo da Autonomia na sua perspectiva histórica, onde já há substancial produção. Refiro-me a produção de pensamento sobre o que é a Autonomia numa leitura política e do que deve ser no futuro.