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E ainda a pobreza

A resposta à miséria passa pela identificação dos problemas

“Onde vivemos e, em primeiro lugar, servir os mais fracos, os que mais sofrem, é semear o gérmen da paz. É demonstrar que, apesar de tanto e tanto sofrimento presente na humanidade, o Eterno é Amor.” Abbé Pierre

A pobreza é um fenómeno de natureza multidimensional exigindo-se, para a sua caracterização, vários factores de análise. A pobreza, enquanto uma das principais manifestações da desigualdade, expressa-se na situação desvantajosa dos indivíduos, famílias e grupos que estão colocados nos lugares mais baixos da estratificação social. Para alguns teóricos, é essa posição social objetiva e o facto de muitos pobres se considerarem excluídos da própria estrutura social, que conduz à situação de marginalidade social. Há pessoas que experimentam a pobreza temporária, em determinadas etapas ou momentos do seu ciclo de vida. Para outras, porém, a pobreza é uma condição permanente: nasceram em famílias pobres e continuaram sendo empobrecidos pela vida a fora – sempre foram pobres. A pobreza surge, assim, como um acumular de desvantagens o que, e tal como refere M. Pinçon, conduz à criação de uma lógica de espoliamento que atravessa toda a vida social dos grupos mais desfavorecidos.

A resposta à miséria passa pela identificação dos problemas. Estes não podem ser atacados globalmente. É necessário identificar e analisar disfunções. Há que analisar especificamente cada grupo de problemas. Falar globalmente da miséria é defrontar um problema insanável. É curioso o resultado final de um estudo sobre a pobreza em Portugal feito pela Cáritas, que diz não haver solução para os problemas sociais do nosso País. Para se combater a pobreza é preciso ter processos de resposta, ter um sistema complexo mas funcional e interdisciplinar, ter recursos técnicos, materiais e humanos, que envolva a família, a comunidade, etc. Muitas vezes, é preciso romper as inércias dos sistemas. Todos os sistemas são precários e é necessário colmatar consciente e pessoalmente as suas deficiências. O estado não pode reivindicar para si só, com exclusividade, o epíteto de única entidade séria e competente, para actuar no campo social. Nem podemos advogar ao estado o direito e o dever de resolver todos os problemas sociais de um País, porque o estado, ainda que seja organizado e diligente na interpretação da justiça social, nunca consegue acompanhar a premência dos problemas. Por outro lado, o apoio económico por si só acaba por ser, normalmente, frio demais, para que se possa considerar uma resposta humana e aceitável para problemas humanos cruciantes e reais. A miséria e a pobreza são hoje, mais do que nunca, problemas complexificados, que não se compadecem com soluções pontuais. Não basta lançar um princípio abstrato, nem propagar uma convicção: é preciso empreender um grande trabalho, de uma importância imensa, que é a valorização efectiva do homem. Se os combates à pobreza não eliminarem a causa, não adianta eliminarem os sintomas, pois o mero arranhar da superfície não dará resultado nenhum. Fala-se tanto na pobreza, e os pobres continuam, ali ao lado, esquecidos, manipulados, impotentes, substituídos e marginalizados. Existem pobres, porque não existe um amor solidário, actuando a todos os níveis. A pobreza é muitas vezes a expressão mais eloquente da falta de amor, falta que tanto pode existir nos governantes, como no cidadão anónimo.

Toda a nossa vida está impregnada de eternidade. No entanto, não há amor na nossa vida. Não há solidariedade. Não há frémitos de compaixão nem centelhas de lenidade no coração do homem. Não há o conhecimento. Não há a aflição. Quem é que pensa, quem é que suspeita da tragédia da criança da rua, das barracas e dos bairros? Povoamos o coração de coisas e bens materiais como se o coração fosse apenas um receptáculo de coisas. Gostamos mais das coisas do que das pessoas. Absolutizámo-las. Curvamo-nos, subserviente e narcisisticamente, para admirar e fruir a lubricidade dos bens terrenos. Já ninguém quer o esforço da reflexão, o aprofundamento da análise, o questionamento exaustivo, o amor da renúncia. A importância de um homem, dizia Tuiavu, “não é determinada nem pela sua bravura, nem pela sua coragem, nem pelo fulgor do seu espírito, mas sim pela quantidade de dinheiro que possui ou que é capaz de gastar”.

Vivemos sem raízes eternas, surdos aos apelos lancinantes do homem, insensíveis às suas necessidades mais prementes, impassíveis perante os seus sofrimentos, não queremos lutar, porque como dizia NIETZSCHE, “as verdades esmagadoras morrem quando são reconhecidas”. Esquecemo-nos que a vida não tem mais do que duas portas: uma de entrar, pelo nascimento, outra de sair, pela morte.