Crónicas

O Inferno de Dante

E há ainda aqueles que, de tão maus que são, que não se encaixam em nenhum dos níveis. A esses o Diabo oferece umas brasinhas e pede-lhes que vão fazer o seu Inferno para longe

1. Para Dante a dimensão humana era política e social. A busca da felicidade é o objectivo que não pode ser atingido sem a ajuda dos outros. Mas o autor não era ingénuo e sabia bem que, entre nós, navegam verdadeiras bestas que justificam a existência do Inferno.

O “Inferno” de Dante é a primeira parte do seu poema épico “A Divina Comédia”, escrito no século XIV, considerada uma das maiores obras da literatura mundial. Depois de “Inferno” seguem-se o “Purgatório” e o “Paraíso”. A narrativa traça a jornada de Dante, das trevas e do erro até à revelação da luz divina, culminando na visão de Deus.

Proponho hoje uma viagem pelo inferno. No Inferno do livro, seguimos Dante pelos seus nove círculos. No início da história, uma mulher, Beatrice, pede a um anjo que traga Virgílio, para que este guie Dante na sua jornada, protegendo-o e, assim, impedindo que algum mal lhe aconteça. O Vate de Roma representa o conhecimento que iluminará o Poeta na longa jornada.

Não tendo eu a habilidade de Virgílio ou de Dante, proponho-vos uma viagem pelos 9 níveis de Inferno vistos com os olhos de hoje. Rodeados de tanta gente tóxica, comecemos pelo derradeiro dos infernos e vamos subindo.

9.º Nível: Traição — o último dos círculos, o círculo quebrado. É este o destino dos perversos, dos despojados de saúde mental que lhes permita concluir. Os insanos, os psicopatas, sociopatas, os narcisistas, os lambe-botas, os xupacus, os medíocres, vivem num terreno baldio, ocupado por esta corja a quem se juntam os traidores, disso tirando prazer e vantagens. Encaixam aqui na perfeição os hipócritas, os que advogam e defendem uma coisa e fazem outra, os que desdenham a lealdade, os que não são confiáveis.

8.º Nível: Fraude — O oitavo círculo subdivide-se em dez valas. Não entrarei em detalhes sobre quem vai para onde, mas é aqui que encontramos os vigaristas de todos os tipos, os apoiados do regime, os que enganam e torcem a verdade no seu proveito. Os corruptos, os desonestos, os trapaceiros, os ladrões de manga-de-alpaca, os que beneficiam do bem comum. Aqueles que não aceitam críticas, pois tudo sabem e tudo alardeiam. Os donos da verdade.

7.º Nível: Violência — É composto por três círculos. O externo está cheio de sangue e fogo, reservado a assassinos e bandidos. Até aqui tudo bem, mas depois descamba e fica brando. O anel do meio é para onde, segundo Dante, vão os que se suicidam. Coitados. Transformam-se em árvores, sendo alimentados por harpias (criaturas mitológicas, representadas como aves de rapina com cara de mulher e mamas). O anel interno, um lugar de areia escaldante, está reservado a blasfemadores e sodomitas. Coloquemos aqui os que se aproveitam da sua posição de poder para alcançar favores de alcofa, os que criam notícias falsas para criar uma “razão” que não existe, os boateiros.

6.º Nível: Heresia — Dante escreveu que os hereges passam a eternidade sepultados em criptas flamejantes no sexto círculo, mas a heresia é uma espécie de pecado obscuro nos tempos modernos. Renegar a princípios é também uma forma de heresia. Ponhamos aqui todos os que prometem e não cumprem, aqueles que para ganhar o poder comprometem-se com o que não podem. Os que mentem com os dentes todos, sabendo que o fazem. Os que nunca admitem que erraram e renegam assim a sua humanidade. Aqueles que arranjam desculpas e passam a vida a dizer, “não fui eu, foi ele”.

5.º Nível: Raiva — As almas coléricas e raivosas deste círculo passam a eternidade numa batalha. Se brincar às guerras para sempre soa como ideia de diversão, então o quinto círculo foi talhado para si. Há aqui também lugar para os que põem o ódio à frente do consenso, do acordo, do debate elevado que permita concluir. É o círculo dos manipuladores, dos que gostam de jogos mentais que induzem os outros a fazer o que não querem. Os que usam o medo como ferramenta no seu provento.

4.º Nível: Ganância — Esta secção do Inferno é reservada para os gananciosos e os excessivamente materialistas. De acordo com Dante, os condenados ao quarto círculo passam a eternidade a brigar por dinheiro e objectos de valor. Precisam que vos indique quem aqui mora para a eternidade?

3.º Nível: Gula — Chuva gelada e lama, uma “mistura invernal” para a eternidade. É a casa dos que não sabem dividir para multiplicar, dos que não vêm no outro uma parte de si. Dos ávidos, dos glutões que só pensam no seu benefício. Dos que têm de ganhar sempre, usando todos os meios necessários, lícitos e ilícitos. Os que nunca saberão o sabor de uma vitória que vem depois de uma derrota.

2.º Nível: Luxúria — O segundo círculo do Inferno é muito ventoso, é o destino dos lascivos e dos adúlteros. Dos que pressionam e pensam com a cabeça que não a que transporta o cérebro.

1.º Nível: Limbo — O primeiro círculo é o lar dos não crentes, dos não baptizados e dos viciosos. Não é bem o Purgatório, mas, porque falamos do Inferno, não é assim tão mau. Dá direito a televisão, mas todos os canais estão configurados para a CMTV. Andam aqui os que se metem na “coisa pública”, mas que não percebem nada de nada, os meio-atoleimados que se babam sobre os que andam nos outros círculos. São estes os que lhes servem de suporte, é sobre eles que se montam para alcançar os seus objectivos. Adoram um bom dramalhão, notícias falsas, amam exageradamente quem lhe põe os pés em cima. Vivem na secreta esperança de um dia conseguirem subir e fazer o que lhes fazem, a outros.

Agora escolham onde põem os que não merecem confiança, os que esperam lealdade cega e são desleais, os que torcem tudo o que dizemos em proveito próprio, os que perseguem quem lhes diz “NÃO”, os que não respeitam limites, os que atormentam quem não lhes lambe o chão, os que colocam na prateleira os que lhe são inconvenientes, os que fazem do “bullying e do mobbing” um modo de vida, os que se acham predestinados a tudo ter, os invejosos e os ciumentos, os que negligenciam os outros, os que vivem com a cabeça enfiada no rabo (no seu e no de outrem), os vendidos por trinta dinheiros.

E há ainda aqueles que, de tão maus que são, que não se encaixam em nenhum dos níveis. A esses o Diabo oferece umas brasinhas e pede-lhes que vão fazer o seu Inferno para longe.

2. Todas as palavras têm valor. Mesmo que caindo de moda. Seja por razões que tenham a ver com o seu esvaziamento, seja por modismos sem sentido.

Requinte. Ouve-se pouco porque a apoucámos. Devia ser uma palavra sempre presente. Em tudo. O requinte que colocamos no que fazemos, o requinte com que cultivamos as nossas relações, o requinte no modo como exercemos cargos públicos.

O requinte na actividade política. Vê-se muito pouco disto. A falta de requinte, de qualidade, é notória. São muito poucos os que o cultivam no que desenvolvem. A chunguice está muito mais na moda. O berro, a piadola fácil e sem sentido. O insulto, a meia verdade. A impreparação e a soberba idiota. Mas nunca o requinte.

O requinte não custa dinheiro. É um “saber fazer”, que tem a ver com o empenho, com a dedicação, com uma certa sofisticação que só se consegue por via do conhecimento. O requinte é elegante, suave. Encerra em si uma certa rebeldia bem-parecida. Implica o melhorar, o refinar para conseguir melhores resultados.

O requinte é a busca da excelência. Faz-nos tanta falta o requinte.

3. Enquanto isso, na Rússia, os programas de televisão são dignos dos piores cenários orwellianos. Num programa da recente, o anfitrião e o seu convidado punham-se de acordo em que a Ucrânia deveria ser apagada do mapa. Que nem a memória mereciam e o que dela existiu tinha de ser destruído. Para estes comentadeiros fanáticos e incultos, a Rússia será sempre um império e o viver em estado de guerra é, por isso, natural.

Moscovo já nem se embaraça com esta gente. Estes pseudo-especialistas russos, vivem vampirescamente agarrados ao pescoço de uma democracia ucraniana pacífica e a querer fazer o seu caminho. Se os militares russos não passam de selvagens indisciplinados, a retórica destes civis é sociopata.