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Contrastes

À hora a que começo a escrever este artigo, Marrocos e Espanha estão empatados no prolongamento dos oitavos-de-final do Mundial de futebol.

Desde que assisti, no último Verão, a crianças marroquinas a jogarem futebol na rua, noite dentro, provavelmente para fugirem ao pico do calor de Agosto, sem campo, sem balizas e sem bola a sério, há um pensamento que não me sai da cabeça: é que o futebol é mesmo a linguagem universal da Humanidade - como a vida, repleto de contrastes, como aquele a que assistimos entre campos modernos vazios e espaços públicos transformados em campos cheios de sonhos.

O futebol encerra em si mesmo a definição de contraste: para alguns, anti-cultural, movimento de massas irracionais por educar a que acedem os inferiores; para outros, máxima expressão da identidade colectiva, capaz de mover multidões e despertar paixões. A prova da sua universalidade não está apenas nas crianças que, mundo fora, jogam à bola e ousam sonhar. Para nós, madeirenses, está também na forma como, onde quer que estejamos, a referência maior que temos sobre a Madeira são duas palavras mágicas: Cristiano Ronaldo - e fazemo-lo porque muitos não sabem de onde vimos, mas através de Ronaldo sabem quem somos.

Ronaldo é, ele mesmo e por estes dias, expressão máxima do contraste: sobre o que parece que somos quando nascemos e sobre o que podemos ser enquanto vivemos. É o madeirense mais conhecido de sempre pelo seu sucesso, mas por estes dias é também o mais falado de sempre pelo desejo de tantos em assistirem ao seu possível insucesso. Não ouso entrar no debate sobre o Homem, porque de Ronaldo interessam-me mais as marcas que o Desportista deixará na História: a passada, absolutamente extraordinária, que o tempo já julgou; a presente e a futura, que o tempo julgará também. Até no infindável confronto com Messi, o contraste: Messi resultado do talento impossível; Ronaldo do que o trabalho torna possível. Como diria Camões, até a eternidade.

Ronaldo é, também, exemplo dos contrastes que marcam a nossa Região. Todos conhecemos o contexto em que nasceu e cresceu. De como superou dificuldades, uma a uma, até tornar-se no melhor jogador de futebol do mundo. Não uma, mas várias vezes. Para muitos como eu, no Melhor de Sempre. Jogo após jogo. Golo após golo. Recorde após recorde. Agora, Ronaldo mostra-nos também como um dia estamos no céu e no outro no inferno para que alguns nos empurram. No caso de Ronaldo, é através da crítica: primeiro desportiva, depois social. No de outros madeirenses, são outras coisas. No dos pobres que nascem pobres, são as dificuldades iniciais, as injustiças que o destino lhes reserva, que por vezes se tornam insuperáveis, porque nem todos temos as oportunidades e a força para superá-las. No caso dos que vivem no limiar da pobreza, é a falta de acesso a um emprego com um salário justo, à habitação digna, à oportunidade de constituir família, que por vezes nem a emigração soluciona. No dos que caem na malha da toxicodependência, é o vício que tudo arrasta.

A Madeira de contrastes é a das 500 maiores empresas, mas também a dos salários miseráveis. É a dos prémios turísticos, mas também a dos cartazes arruinados pela pobreza, pela toxicodependência e pela insegurança nas ruas. É o Bispo D. Nuno que nos recorda o óbvio: é que “enquanto houver um sem-abrigo, enquanto houver uma pessoa que vive numa situação de pobreza extrema, nós não podemos descansar”. Como Ronaldo que corre atrás da bola, à procura de mais uma conquista, a gente não pode parar. A agressividade que cresce nas ruas, equivalente à que cresce na Assembleia Regional à medida que nos aproximamos de eleições, contrasta com a ausência real de soluções. A Madeira precisa de um pacto a sério: primeiro, com a realidade, interpretada à luz de factos e não de distorções opinativas; depois, com a procura de soluções, com empenho sério e compromisso sincero.

À hora a que termino este artigo, Marrocos é a prova dos sonhos possíveis, que contrasta com as lágrimas dos espanhóis. Sobre Portugal, sabe-se que Ronaldo começará no banco e a tristeza do madeirense é a alegria dos medíocres que vaticinam o seu fim. Como futebol é linguagem universal, talvez o seu exemplo sirva para despertar em todos os madeirenses o sobressalto cívico e a mobilização social que este momento da nossa vida colectiva reclama - porque nada nos é dado nem adquirido, tudo tem de ser conquistado.

Em 2016, em pleno Euro, escrevi neste Diário uma carta aberta a Ronaldo pedindo “ambição, golos e vitórias”; hoje, limito-me a agradecer-lhe pela Alegria que me faz sentir ao dizer que, como ele, sou Madeirense: em Marrocos e no resto do mundo. Força, Capitão!