Crónicas

“O lugar que te deixa louco”

Não há prazos para nada. Uma simples resposta leva o tempo que os serviços entenderem que deve levar

1. Disco: pelo absurdo do que vai abaixo, recomendo qualquer coisa de Stockhausen. Não que este compositor seja absurdo, mas porque a sua música passa a fazer sentido até para um leigo.

2. Livro: raramente recomendei aqui banda desenhada. Faço-o hoje. Não porque sou seu ávido consumidor, mas porque também tem a ver com a crónica de hoje.

3. “O lugar que te deixa louco” é um local que existe em “Os XII Trabalhos de Astérix”. Um prédio de escritórios de serviços públicos de vários andares. Um verdadeiro labirinto, onde impera a burocracia e administrado por pessoas inúteis e incompetentes, que mais não fazem do que direccionar, quem a eles se dirige, para outras pessoas igualmente inúteis e incompetentes, noutras partes do prédio.

Encontrar o impresso A 38 é a oitava tarefa que Astérix e Obélix precisam concluir. Correm de sala em sala e de guiché em guiché, preenchendo um formulário atrás do outro, até que Astérix decide inventar uma licença e uma circular falsas. O prédio fica num caos enquanto os funcionários enlouquecem, pedindo informações uns aos outros, sobre essa licença, de que nunca ouviram falar, pois não existe, até que o responsável máximo do templo de burocracia dá a Astérix a Licença A 38, só para se livrar dele.

Sempre que tenho que lá ir, ou ouço alguém contar as suas “aventuras” na Segurança Social, lembro-me deste episódio. Já fui esbulhado em mais de 4 mil euros por um erro que cometi, devido a uma “não informação” dada, neste caso não dada, pela Segurança Social. Os serviços são um verdadeiro inferno.

A Segurança Social na Madeira “não coisa, nem sai de cima”. Explico: há umas competências regionais, principalmente no modelo (?) de gestão, mas o grosso (o dinheiro) vem praticamente todo de Lisboa. Não é assunto que as brilhantes cabeças que nos governam gostem de falar. Não há muito o que mostrar, praticamente não há inaugurações a fazer. Não se fazem visitas alindadas com discursos formatados. O “pilim” vem de fora porque a Autonomia Socialista da Grande Laranja, em 46 anos, não conseguiu criar crescimento e riqueza para que fôssemos autónomos também aqui.

Lê-se no sítio da Segurança Social nacional, que serve para aqui, pois são eles que pagam: “são objectivos prioritários do sistema de Segurança Social garantir a concretização do direito à Segurança Social; promover a melhoria sustentada das condições e dos níveis de protecção social e o reforço da respectiva equidade; promover a eficácia do sistema e a eficiência da sua gestão”. Apoia-se em três princípios gerais, o da universalidade, o da igualdade e o da solidariedade, e doze complementares: equidade social, diferenciação positiva, subsidiariedade, inserção social, coesão intergeracional, primado da responsabilidade pública, complementaridade, unidade, descentralização, participação, eficácia, tutela dos direitos adquiridos e dos direitos em formação, garantia judiciária e informação. Estes princípios concretizam-se em três planos: nacional (englobando as Autonomias), laboral e intergeracional.

Lendo o que acima vai dito por aqueles que contactam com este “inferno”, não é difícil concluir o quão longe anda a SS dos seus princípios.

Feita esta introdução, vamos ao caos em que se transformou a Segurança (?) Social na Madeira.

Querem é números. Há empresas, poucas, que metem processos de recurso a coimas da Segurança Social e, normalmente, ganham-nos todos, por os procedimentos serem mal montados, os valores empolados. “Inventam-se” multas, que se passarem, passou. Mas estes são a ponta do “iceberg”. Imagine-se a larga maioria que “come e cala”, que pagam e não refilam. E atenção, que falamos de um procedimento que tem custos (taxa de justiça, emolumentos, trabalho do advogado, etc.), que, por vezes, podem ultrapassar o valor em causa. Pagam à justiça e, porque ganham, não pagam à Segurança Social.

Não há prazos para nada. Uma simples resposta leva o tempo que os serviços entenderem que deve levar. Independentemente do que a lei diz e determina. Qualquer contestação não tem carácter suspensivo. É assim ou sopas. Três, quatro, cinco meses, é a norma para respostas simples. E, entretanto contam-se os juros ao dia e ao mês, e a dívida aumenta sem parar. Não é que o panorama nacional seja muito melhor que o regional, mas aqui a pressão é muito maior, a prepotência mais despudorada.

Sou dos que acham que o papel dos organismos públicos, quando se deparam com empresas ou particulares em situações de incumprimento, deve ser o de encontrar soluções e não o de aumentar o prejuízo. Ninguém fica a ganhar com isso. O SPET Madeira, Departamento de Inspecção e Secção de Processo Executivo ISSM-IP-RAM, não existe para outra coisa do que instaurar processos, perseguir quem em dificuldades, accionar penhoras e prejudicar quem procura alternativa para cumprir a lei. O importante é mostrar números, não resolver problemas. Uma visão determinista da lei, comendo-lhe mesmo as vírgulas, é definidora de quem não passa de um zelota, de um fanático. Resolver um processo destes é coisa de loucos. Os e-mails chegam sem referência de endereço ou assinatura. Depois começa o fadário de tentar saber quem é o responsável pelo mesmo. E o tempo a passar e os juros a acumular.

O nosso tecido empresarial é constituído na sua maioria por microempresas. Um universo familiar, que replica no mundo dos negócios, uma dimensão celular, que deve ser tratado com muito cuidado. Criar constrangimentos desnecessários a estas empresas, bem como às pequenas e médias, é estar a dar cabo do pouco que temos. Em última análise, há empresas a encerrar por dívidas ao Estado, sem que este execute tudo o que está ao seu alcance para potenciar a ajuda que pode dar, alargando prazos de pagamento, excluindo quem em dificuldades de pagar juros, ou seja, criando condições para a recuperação ao invés de ser um factor de dificultação. O que interessa, como já referi, são os números. Não as pessoas.

E falo no presente, num momento em que tentamos sair de uma crise profunda, provocada pela pandemia, com muitas empresas a passar por enormes dificuldades, apesar de há boca cheia andar o Governo a arengar os apoios (?) que deu. Os passos que devem ser dados agora, devem ser curtos e certos. As recuperações demoram e devem ser cautelosas. Ter o Estado a ser um impedimento, não faz sentido.

Estou ciente que a grande maioria das empresas que falharam o cumprimento do acordado, não o fizeram por sua vontade. Isso aconteceu por razões que as ultrapassam. Ver nisso uma causa para aplicar o princípio da “dura lex, sed lex”, é persistir em fazer parte do problema.

Os serviços da Segurança Social devem ser aqueles onde mais vale o conhecimento. Por mais de uma vez fui abordado por pessoas a me perguntarem se conheço lá alguém que “dê um jeitinho”. Criar confusão também não ajuda. A partir daí acabou-se a simpatia de quem se arvora a ser o dono da chave da retrete.

Atenção que não quero que fiquem com a ideia de que culpo todas as pessoas pela situação. O problema dos serviços não está nos funcionários, está em algumas das chefias intermédias e nas cúpulas. É, pois, uma questão de liderança, ou melhor, de falta dela.

Sei perfeitamente que, no meio disto tudo, há sempre o “chico-esperto” que dá a volta às coisas, procurando o benefício. Mas não pode pagar o “justo pelo pecador”.

Precisamos de mais e melhor. De mais exigência por parte de quem recorre à SS. Mas não o fazemos. Comemos, calamos e, assim, nada muda.