Crónicas

Homo digitalis?

Não por acaso, após a emergência da pandemia e com o alastrar do vírus no mundo, muitas vozes alertaram para o progressivo controle da liberdade e identidade individuais pelos Estados. Aparentemente, o propósito é utilizar a tecnologia para correlacionar informação que ajude a suster a pandemia. Mas, com a recolha massiva de dados pessoais e toda uma “vida cibernética” potenciada pelos confinamentos, o cidadão acaba cada vez mais prisioneiro do seu “duplo” digital — o que, a prazo, irá tornar periclitante a existência das democracias tal como as conhecemos. Aliás, aquilo a que temos assistido nos últimos tempos tem sido ao resvalar silencioso para formas de governamentalização suavemente autocráticas, em que os Estados vão gerenciando as nossas pequenas cedências quotidianas a troco de (suposta) mais segurança...

Mas, não será só a este nível que a (pre)dominância digital pode vir a ser problemática para a esfera da individualidade e, portanto, para a salvaguarda da liberdade. Líamos há dias no Expresso que “sites do SNS enviam dados para a Google”. Ora, mesmo “anonimizados” (dizem eles), tal não impede que “as empresas de publicidade criem perfis do utilizador mediante localizações, temáticas preferidas, sites visitados, compras efetuadas, ou endereços IP armazenados pelo histórico de navegação na internet”. O assunto é comentado pelo Professor Eduardo Correia, da Universidade do Porto, nos seguintes termos: “O Estado está a entregar de mão beijada a gigantes da internet dados sensíveis dos cidadãos”: a Analítica está no comando e é bastante provável que a Google saiba mais dos portugueses, do que eles acerca de si próprios.

De facto, esse conhecimento “útil” terá sido exponencialmente ampliado com a pandemia. Basta ver como se tornaram ainda mais bilionários os gigantes da internet (Apple e Amazon, por exemplo) e como, à pequena escala do nosso país, a pandemia veio alterar hábitos de consumo, acelerando mudanças tecnológicas que estavam apenas “prometidas”: todos os negócios a retalho suportados pelas plataformas, a alimentação e demais serviços Uber, as lojas sem caixas e “scan & go”, ou as “darkstores” (só fornecem o adquirido on line). É sabido que este tipo de comércio triplicou com a pandemia e acabou por criar, até com alguma sustentabilidade, um novo tipo de consumidor.

Ora, se esta incorporação do digital à vida quotidiana é um dado irrecusável que o futuro só vai acelerar, convém não perder de vista que a dominação “internetiana” pode estar ajudando a criar outras distopias, com as novas formas de compulsão consumista, os mecanismos de fragmentação do mundo do trabalho e as sequelas de polarização no digital, com injustiça na retribuição, invisibilidade do trabalhador e, corolário de tudo isso, maior insensibilidade social e decréscimo da solidariedade. Sintoma crescente deste pouco admirável mundo novo é não só a dispensabilidade da mediação corporal no trato entre os humanos, como a incorporação da aleatório digital à gestão do emprego e dos serviços: boa parte dos trabalhadores da TAP serão despedidos “via” algoritmos...

Ou seja: o “homo digitalis” está em acelerada gestação. Mas, como ele não tem corpo nem rosto, não chora nem se deixa tocar, é muito mais passível de ser governado, manipulado e submetido. Tudo democraticamente e, agora — só um breve clique — com a sua própria anuência: o sonho de qualquer ditador!