Crónicas

Renegade, buggy e mehari

As pessoas que iam dar à Avenida do Mar sonhavam libertar-se do desconforto de estar de pé e da espera

Eu das marcas percebia pouco, mas a ignorância sobre os detalhes nunca me impediu de sonhar. Fosse sobre a qualidade do chassis de um carro ou a verdadeira dimensão do interior de um avião, a miúda do Laranjal não via obstáculos quando se metia a imaginar o futuro. E não me foi muito difícil olhar em frente e ver-me com 20 anos, cabelos ao vento e ao volante de um jipe da moda, daqueles descapotáveis.

Além de me tirar 10 quilos e acrescentar uns 10 centímetros à altura, na minha cabeça contava o vistaço que havia de fazer uma mulher num carro daqueles, sobretudo às pessoas que aguentavam o frio, o vento e os dias de calor nas paragens de autocarro na Avenida do Mar. Pessoas como eu que, todos os dias, descia dos Ilhéus para apanhar o 12 e, para distrair, dava-me para pensar. Num carro daqueles até podia continuar gorda, ninguém ia reparar.

E quando passava um buggy ou um jipe o assunto comentava-se na fila, sobretudo entre os empregados das lojas de roupa que, como quase todos, viam o concurso “1,2,3” à quinta-feira à noite para ver se o carro tinha saído ou se tinham sido enrolados e levado para casa uma bota Botilde e um saco de rebuçados. O carro do concurso nem era dos de fazer vista, era quase sempre um Renault 5 beige e sem muita graça.

Pelo menos parecia-me, mas eu tinha 14 anos e achava que a vida devia ser mais ou menos como nos filmes, devia ter estilo, um quê de distinto que a tornasse numa aventura romântica. Os lojistas, cansados daquelas esperas nas paragens e fartos de autocarros velhos, queriam conforto, que a viagem fosse rápida e sem incidentes. Às vezes era preciso ir de pé, sentar-se no banco onde a janela não fechava e dividir o espaço com os miúdos da escola, barulhentos e parvos.

E para isso, para ir a casa almoçar, servia bem o Renault 5 que ganhava de goleada à rotina de correr para apanhar o horário da uma e meia. É claro que havia um certo convívio na fila da paragem. Falava-se do episódio da telenovela e do filme que ia dar a seguir, passava-se pelas notícias e não se esquecia a bola. E todos se queixavam das demoras, da qualidade das camionetas. De uma certa maneira, as pessoas que iam dar à Avenida do Mar sonhavam libertar-se daquele espartilho, do desconforto de estar de pé e da espera.

Eu queria fazer em estilo, ao jeito da época em que as mulheres bonitas e independentes tinham um pouco de Michèle Mouton. E mesmo sem entender de ralis ou de carros, da potência dos motores ou de marcas, tinha a percepção de que o espírito da época também se definia pelos automóveis . E gostava de jipes, mas outros queriam ter um DeLorean com as portas a abrir como se fossem asas ou um Ford Escort XR3, a maioria dava-se por feliz com um carro barato e eficiente que desse para ir para o trabalho e para passear aos domingos.