Crónicas

O sabor da resignação

Não é preciso ser jurista para entender que certas manobras não cumprem com os princípios que fundamentalmente distinguem as democracias dos sítios onde quem manda faz como quer

Alto lá. Ordenou-se, de véspera, uma proibição de circulação para fora de Lisboa por Resolução do Conselho de Ministros. Com o requinte de remeter, nas excepções, para um decreto de regulamentação do Estado de Emergência que entretanto deixou de vigorar (tanto o decreto como a Emergência).

A gente sabe que – segundo o Primeiro-Ministro – os juristas são peritos em identificar problemas e os políticos são presumivelmente melhores a resolvê-los. Mas não é preciso ser jurista para entender que certas manobras não cumprem com os princípios que fundamentalmente distinguem as democracias dos sítios onde quem manda faz como quer.

Que o Parlamento tão pacatamente aceite só confirma o estatuto actual dos deputados: funcionários públicos de partidos, com contrato a termo certo.

Na mesma semana, a Câmara Municipal de Lisboa delatou manifestantes contra Putin à Embaixada da Rússia. Uma prática afinal corrente junto de outros inofensivos faróis da comunidade internacional, como Israel e a Venezuela. Num exemplo de eficiência e contenção de custos, a Câmara investigou-se a si mesma, concluindo que esta flagrante violação de uma cátedra de leis e do senso comum só aconteceu 52 vezes entre 2018 e 2021. Por culpa, evidentemente, do responsável pela proteção de dados.

Enquanto estas cabeças eram colocadas a prémio, outras congeminavam, no Ministério da Justiça, uma estratégia para a corrupção. Entre elas, a de um adjunto que que foi condenado a uma pena de suspensão por pressão sobre magistrados para que estes arquivassem o processo Freeport, e que trabalhou no Eurojust com o procurador José Guerra, polémica e opacamente nomeado pela Ministra para a procuradoria europeia, por entre ligações familiares deprimentes e difíceis de explicar. Já todos vimos raposas a mandar no galinheiro, mas o raposeiro a instalar medidas anti-furto é uma estreia.

À luz da actualização destas áreas do conhecimento, vi-me forçado a organizar a minha biblioteca. O Direito Constitucional passou para a secção de ficção, ao lado do Senhor dos Anéis e de outros livros grossos de fantasia habitados por criaturas mitológicas e senhores feudais, que se deleitam com frases do estilo ‘You shall not pass’ e ‘one does not simply walk into a Área metropolitana de Lisboa’.

“Arquipélago Gulag”, o relato macabro de Soljenítsin sobre os horrores do comunismo russo, fica agora aninhado junto dos manuais de direito administrativo, roçando impunemente nas suas mangas de alpaca, até que o assassinato e a tortura de dissidentes se convertam em matérias de balcão e carimbo, como aos tempos convém.

Os livros sobre separação de poderes, e outros fundamentos clássicos do Estado moderno, hospedaram-se na literatura de viagens. Aí, junto de Chatwin e Paul Theroux, permitem-nos constatar uma generosa e matemática equidistância entre Estados de Direito, Portugal, e as tão orgulhosas quanto ancestrais tribos da Namíbia e da Patagónia.

A “Ideia de Justiça”, de Amartya Sen, foi transladada para junto dos manuais de interpretação de sonhos e outros trambolhos igualmente esotéricos. Já a “Metodologia da Ciência do Direito”, de Larenz, faz agora companhia às instruções do Monopólio e do Uno, e outros manuais de regras facultativas.

1984, o romance distópico de George Orwell, passou para a secção de assuntos correntes, e aí jaz, aberto como um panteão, no seguinte e sublinhadíssimo excerto: “a Guerra, ao tornar-se permanente, deixou de existir. A Guerra não se dirige já ao inimigo, mas aos súbditos do poder político, para deixá-los no limiar da fome e da dependência. Não para conquistar território, mas para manter intacta a estrutura da sociedade, e segurar o tipo de obediência que só floresce no medo”.

O Tratado da União Europeia? Abri-o ao calhas, e fiquei tão invejoso dos direitos dos estrangeiros que o sepultei debaixo de um maciço e indolente tomo de Direito Penal. Deixei-os à guarda de um ligeira mas deliciosa colecção de crónicas do Nuno Costa Santos, que se chama “Eu quero emigrar para o meu País”.

Caraças. Tenho de sair de Lisboa, para um casamento – restrito, testado – marcado há meses, e que não se descalça num dia só. Levo a Desobediência Civil, de Thoreau, e ainda o Regime Geral das Contraordenações, na esperança de furtivamente os colocar entre as costelas e o cassetete.

Em casa está quase tudo arrumado. No chão, com paradeiro incerto, fica só ‘A República’, de Platão, um livro onde o filósofo especula - em delírio - que as coisas seriam diferentes se os professores e os sábios estivessem no poder, se pudessem puxar freios e sacar de contrapesos, e se nunca pudessem ser desautorizados, porque seriam eles a nomear o Primeiro-Ministro.

Comprazo-me nesta nova estante. Uma biblioteca baralhada, afinal, é uma inteligência à espera de se voltar a dar. Enquanto não se dá, sabe bem a ignorância. Sabe quase a resignação.