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Espionagem sem Espiões

A autarquia de Medina pode, assim, ter facilitado o trabalho daqueles que trabalham contra a democracia

Contrariando a ficção de Ian Fleming, criador do engenhoso 007, todas as fontes verdadeiras referentes ao que é a espionagem enquanto realidade apontam para a ideia de que este é um trabalho particularmente aborrecido. Ainda mais no caso de Portugal, visto que autarquias como a de Lisboa estão empenhadas em reduzir ao máximo o número de espiões estrangeiros a atuar em Portugal. Para isto, recorrem ao método infalível de passar, de forma automática, informações pessoais de indivíduos às embaixadas interessadas, porque, como se sabe, se não é preciso esforço no reunir de informações, por que é que se deveria investir na contratação e formação de novos espiões?

Foi durante a Segunda Guerra Mundial que Portugal se tornou um palco de espionagem para países estrangeiros. O livro “Império de Espiões” de Rui Araújo denuncia a indiferença estratégica de Salazar que levou a que Portugal se tornasse num campo de batalha para os espiões do Eixo e dos Aliados. Contudo, em relação a estes eventos existia uma justificação credível, a de que se não fosse essa neutralidade, Portugal teria sido arrastado diretamente para o conflito bélico e que prontamente se viria atacado ou pelos franquistas espanhóis ou pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido que chegaram a formular um plano para a invasão dos Açores. Parece que, no presente, Portugal se tornou novamente palco de espionagem, desta vez sem espiões e sem justificação.

Como já é sabido, no passado dia 10 de junho, descobriu-se que a autarquia de Lisboa decidiu comunicar à embaixada russa os nomes, moradas e contactos telefónicos de três nacionais russos que organizaram uma manifestação que tinha como alvo de crítica o regime de Putin e a detenção indevida de Alexei Navalny em 2021. Posteriormente, soube-se que este não era um caso inédito, mas que o mesmo já teria acontecido a ativistas pró-Palestina que viram os seus dados fornecidos à embaixada de Israel, a ativistas pró-nepaleses informados à China e a ativistas venezuelanos denunciados à Venezuela.

Além da flagrante má-fé demonstrada pela câmara de Lisboa, é também evidente que não existe nenhum documento legal que exija este fornecimento de dados a países ou embaixadas estrangeiras pelo que não se compreende a razão para que isto tenha ocorrido. O que certamente se reconhece é que não existe qualquer tipo de cabimento para este tipo de comportamentos num país democrático, quanto menos em favor de países com os quais não se encontra aliado ou em parceria nem por via da União Europeia nem da NATO, tendo até esta última manifestado recentemente preocupações em relação a dois dos países que receberam estes dados.

Este é um escândalo diplomático e humanitário. Creio que entre os leitores do diário não existirá ninguém ingénuo ao ponto de pensar que os países acima referidos não manejam os seus tentáculos sobre Portugal. A história de assassinatos políticos a mando da Rússia no estrangeiro não é nova. Iniciou-se com o governo da URSS e continua nos dias de hoje (veja-se o assassinato falhado de Sergei e Yulia Skripal em 2018, no Reino Unido). A autarquia de Medina pode, assim, ter facilitado o trabalho daqueles que trabalham contra a democracia. Mas, como diz o autarca e a maioria do Partido Socialista, foi um erro “lamentável”, se bem que a verdadeira vítima disto tudo seja o próprio Fernando Medina que está a ser criticado pelos partidos da oposição.

Por fim, haja esperança. Augusto Santos Silva pediu que a Rússia apagasse os ditos dados e todos sabemos que o governo russo se preocupa com o cumprimento de leis internacionais e com o direito dos cidadãos. Portanto, finjamos que o problema é inexistente e continuemos a fazer de conta que os valores democráticos continuam a ser uma prioridade nacional.