Crónicas

A morte do futebol

Os responsáveis dos partidos, antes de se agarrarem às pérolas como velhas escandalizadas, deviam corar de vergonha e contrição

A Super Liga Europeia não foi um epifenómeno. Foi um atentado, mas também o princípio falhado de uma revolução. E marcou o advento do futebol-empresa.

O que é o futebol-empresa? Miguel de Sousa definiu-o bem, numa crónica que escreveu para este jornal: “no campeonato inglês, os clubes foram comprados por investidores ou empresas, inglesas ou estrangeiras, que detêm o capital a cem por cento. Arriscam investir no negócio do futebol fazendo-o crescer, aumentando o seu património e proporcionando lucros como qualquer outra empresa em qualquer outro negócio. Os ex-“sócios” do ex-clube agora são meros adeptos, ou seja os clientes do negócio. Naturalmente que se estiverem satisfeitos compram bilhete e vão assiduamente ver a sua equipa favorita. (…) A única “arma” de influência no clube que os adeptos têm é a de não comprar bilhete e não ir aos jogos, fazendo com que o clube/empresa perca receitas e o lucro passe a prejuízo. (…) Como em qualquer negócio! (…) E essas empresas são de americanos, árabes, russos, tailandeses, indianos, austríacos, ingleses, franceses, alemães e até brasileiros”.

A Super Liga é a consequência lógica deste futebol-empresa, e da separação entre adeptos e capital que Miguel de Sousa louvava – talvez com trágica razão – como modelo de resgate dos clubes regionais.

Ignore-se a aberração de criar uma liga aristocrática e fechada, de acesso determinado pelos zeros na conta bancária. Esqueça-se a delinquência da FIFA e da UEFA, a irracionalidade na atribuição de direitos televisivos, e até os problemas financeiros dos clubes. Debrucemo-nos sobre as consequências do futebol-empresa para o jogo.

O futebol-empresa não é concebido para deleite dos adeptos, mas para remuneração do capital. Como o capital, não tem território, não tem povo, e não tem contemplações.

Porque não tem território, o futebol-empresa conduz à emancipação entre os clubes e as regiões. O clube-empresa pode, querendo, comprar outros clubes e instalações noutros países, e montar sucursais ou equipas B onde antes estava um Marítimo ou um Nacional.

Porque não tem povo, o futebol-empresa não é gerido pelos adeptos, e é agnóstico quanto à sua origem. Se o que importa são pagantes de bilhete ou espectadores televisivos, pouco interessa ao Chelsea se os seus aficionados estão em Londres ou na China. O acionista russo pode até preferir o adepto chinês ao sócio doméstico, se o primeiro for mais numeroso e melhor pagador.

Porque não tem contemplações, o futebol-empresa tem aspirações comerciais de domínio e consolidação. O clube-empresa pode adquirir outros clubes ou fundir-se com eles, expandindo o seu alcance, aprimorando o seu plantel, e afirmando-se em vários campeonatos sob divisas diferentes, em jeito de conglomerado.

Nenhuma destas tendências augura grandes alegrias para a competição e para os clubes de meia tabela, como hoje até os grandes clubes portugueses serão. Os donos do futebol, convencidos do desinteresse das gerações mais novas por um desporto só pontualmente emocionante, apostam em ligas onde seja Natal todos os dias.

A Super Liga falhou, mas o clube-empresa vai continuar. Vai talvez salvar os clubes, fazê-los crescer e sanar-lhes as finanças, com a caução da JP Morgan e da Goldman Sachs. Vai fazer-nos odiar o futebol, mas ainda assim comprar futebol. E promete matar o futebol, não no seu alcance ou rendimento (que vão continuar a crescer), mas no valor que lhe atribuímos, na alegria que nos traz, na sua riqueza e ligação às nossas origens.

Com a morte do futebol aprenderemos, talvez, que o jogo vale pouco sem o traje incendiário da paixão. Sem Totti no Roma, sem Maradona no Nápoles, sem Eusébio no Benfica, sem a voz dos nossos pais ao ouvido, resta um desporto dado à deambulação, ao anti-jogo, e à paradoxal procura do nulo no marcador. Por alguma razão os americanos, que adoram negócio, nunca conseguiram pôr ali os dólares a render.

De caminho, pode ser que a morte do futebol relembre as razões pelas quais desprezamos a globalização, a deslocalização, e a lógica de aumentar lucros e reduzir custos a qualquer preço.

O futebol é o último refúgio do tribalismo, da filiação, e do romantismo heróico da procura e da superação no mundo ocidental. Precisamos dele porque precisamos deles, em doses homeopáticas, para conferir às nossas vidas o condimento mítico e de pathos que nos consola a humanidade.

A rejeição da Super Liga é então uma pulsão de sangue e de vida. Mesmo cheio de pecados, o futebol como é recorda-nos de que não somos máquinas, e desdenhamos um mundo governado pela cegueira da conveniência, onde só o dinheiro e ganhar dinheiro importem.

Talvez os clubes de sócios caminhem inteiros para a sua ruína, com um velho guerreiro na sua última carga. Mas até nisso há alguma beleza. A essência de qualquer grande jogo está em preferir a derrota íntegra à vitória corrompida. Preferir perder como somos a ganhar como outra coisa qualquer.

Nunca gostei tanto de futebol como na semana passada.

Agarrados às pérolas

Já toda a gente percebeu o que se passou com o financiamento do CDS-PP nas eleições regionais. Desculpas e bizantinismos jurídicos à parte, é evidente porque se recebeu aquele valor, e não outro, e porque se recebeu nas contas de militantes, e não noutras. Se alguém ainda não percebeu, é porque não vale a pena explicar.

Além da evidência e do repúdio, convém colocar algumas coisas em contexto. Para que fique claro: a lei de financiamento partidário, no que toca a donativos de particulares, é uma proeza do obscurantismo e do fingimento. Os responsáveis dos partidos, antes de se agarrarem às pérolas como velhas escandalizadas, deviam corar de vergonha e contrição por um sistema de que continuam a beneficiar, ainda que com mais manha e juízo do que os democratas-cristãos.

Não é nova a vergonha, nem é nova a vontade de não a resolver. E até era fácil: os partidos podiam ser financiados por qualquer pessoa, em qualquer montante, desde que a origem do donativo e a identidade do doador fossem verificados por uma comissão independente, e publicados numa lista online. Se dá para contornar? Evidentemente. Mas o pudor e o julgamento público já resolviam muita coisa. A começar por estes protestos de virgindade excessivamente fervorosos e acusatórios, vindos de donzelas fatalmente experimentadas. Se os madeirenses soubessem como se financiaram e financiam os partidos, jackpot legal incluído, até tinham alguma pena de Rui Barreto, e bocejavam diante do episódio de CSI em que tão desastrada e desnecessariamente se enfiou.