Crónicas

A força de desacreditar

Como o resto do país, não me cabe determinar se foi justamente pronunciado. Mas sei, e para mim sobra, que o senhor é um impostor

Sobre o julgamento de José Sócrates, ocorrem preliminarmente dois comentários.

O primeiro é de regime. Preguiçosamente, pode concluir-se que o Ministério Público é incompetente. Haverá nisso um fundo de verdade, sobretudo na parte em que o MP, algo sofregamente, se absteve de escolher as suas batalhas e de se concentrar nos crimes com mais pernas para andar. Mas vale a pena presumir o contrário, que é competente. E observar que naquela sala estavam três ou quatro magistrados, frugalmente ajudados e miseravelmente pagos, especialmente para os riscos e tentações em que incorrem. Litigavam com um exército de advogados, contratados por 28 das pessoas mais ricas e poderosas do país. Quando Ivo Rosa os acusa de “delírio”, “fantasia”, e de “falta de rigor e consistência”, pode pensar que protege os arguidos do arbítrio da Lei. Mas está a ser forte com os fracos. E o MP não é fraco por incúria, mas por opção. A sua fragilidade é a fragilidade da Justiça, em que o país cronicamente desinvestiu. A demora, a obstinação, a insegurança e o obscurantismo jurídico, a falta de civismo e até o preconceito de classe são o dia-a-dia, que impede a condenação por corrupção, mas também a solução oportuna do litígio mais corriqueiro. Não foi uma distorção, mas um retrato, que partido algum aceita responsavelmente mudar. Dia de reflexão.

O segundo é moral. Nunca gostei da personagem de José Sócrates. Dou – juro que dou – de barato as alegações de corrupção. Basta o resto, e citado de memória.

Um indivíduo que se deleita pela reputação de “animal feroz”, e prefere a pressão política e legal ao diálogo e ao compromisso. O tratamento selvático ou possessivo de grandes empresas e da opinião pública. O mal disfarçado ressentimento social, que – para que não restassem dúvidas – mandou condecorar com créditos universitários adquiridos ao Domingo, e com uma pós-graduação voluptuária numa universidade francesa. A contratação de um escritor fantasma para a tese, pungentemente dedicada à “Tortura em Democracia”. A apresentação da “obra” junto de uma plateia de figurões, para inaugurar um pretenso estatuto “intelectual”, que cedo demais brandiu na RTP. A compra, a seu mando, de milhares de exemplares do livreco, como se as vendas de um texto alheio significassem alguma coisa sobre si.

Um estilo de vida pretensamente faustoso, como julga que lhe compete, e uma vida pessoal sugestiva, mas felizmente misteriosa, em que namoradas, ex-mulheres, primos e amigos são arrastados e consumidos pelo vórtice do seu poder, que rodopia em torno da sua vertigem de narcisismo e prazer de comando.

De caminho, a responsabilidade política pela ruína financeira do País, escoltada por uma negação patológica da ética, sempre substituída pela “narrativa” que tão truculentamente impõe.

Este caso de estudo sobre o pior da política é José Sócrates no seu papel. E é por lá que continua, como se viu na sexta, quando cantou vitória minutos depois de um Juiz constatar que mentira quanto à origem da fortuna da própria mãe.

Não são lapsos. É carácter, e sufragado nas urnas. Como o resto do país, não me cabe determinar se foi justamente pronunciado. Mas sei, e para mim sobra, que o senhor é um impostor, que prefere afundar-nos no seu engano a redimir-se através da realidade.

O extraordinário não é então que Sócrates acredite. O extraordinário é que tantos ainda acreditem nele. Por sede de ilusão, temos ainda o fraco país que merecemos. E não uma coisinha bem melhor.

O Leste não morre à sede

É comum dizer-se que a Madeira tem bom clima. Comum, mas impreciso. A Madeira não tem bom clima. Tem muitos bons climas, encrustados a pequenos lombos que a providência caprichosamente escolheu. E tem também manchas de outros climas, alguns terrivelmente forrados e obstinados.

Os continentais desconfiam, numa espécie de provincianismo urbano, destas evidências do senso comum. E dedicam-lhes sorrisos complacentes que, não raramente, são depois avistados de mãos nos sovacos, a tiritar, em passeios desencaminhados pelo Santo da Serra e pelas zonas altas da Camacha.

De entre os muitos climas que a Madeira tem, o chuvoso é o mais dissimulado. Pouco importa que a chuva seja em tanto sítio recorrente e fatal. É sempre tratada como um engodo, ou uma birra de elementos de outro modo favoráveis. O fenómeno é especialmente agudo no Porto Santo, onde o crónico mau tempo é negado com a mesma força com que se garante que a lambeca é uma iguaria de classe mundial.

Daí que a chuva, nesta terra, não aconteça sem explicação. O madeirense tem o vício do bruxo, de postumamente atribuir a agressividade do tempo a um presságio que a tenha precedido. É assim com o Leste. Essa poeira de ouro cálido, a que tragicamente nos habituámos, é prenúncio de borrascas tropicais e dilúvios bíblicos. Passado o temporal, pomo-nos a medir forças com os avisos dos antigos: “Já meu pai dizia que o Leste não morre à sede”; “E minha avó! Minha avó dizia que do Leste à chuva vai um salto de pulga”; “E meu avô! Se as Desertas estão perto, a chuva não está longe”.

Como se adivinhar o tempo fosse uma tradição familiar.

Mas não é. E o clima nesta ilha é mais infelizmente previsível do que gostaríamos de crer. No Elucidário Madeirense de 1998, contam-se doze aluviões entre 1724 e 1921, com a reserva de que um tal de Mouquet já em 1601 notara (devia ser muito observador) que “as águas que descem das montanhas algumas vezes destroem pontes e casas em toda a ilha”.

A estes doze, acrescentam-se pelo menos quatro desde que sou vivo: Outubro de 1993, 20 de Fevereiro de 2010, Natal de 2020 (Ponta Delgada), e as águas de Março passado, que, se não fizeram vítimas, sobraram em pluviosidade e pavor.

O fenómeno parece então mais agudo e mais frequente. E pode não ser acidente. Alguns meteorologistas colocam a Madeira no eixo do aquecimento global. Chamam-lhe “expansão dos trópicos”: uma subida, para norte, das temperaturas mais voláteis, dos ventos mais aleatórios, e das nuvens mais carregadas do sul. O crescimento dos trópicos empurra também os desertos, contribuindo para os incêndios, secas e outros fenómenos extremos no sul da Europa e também em Portugal Continental.

As chuvas não são um azar, um castigo, ou um sermão castiço dos velhos. São uma realidade que, se nunca nos abandonou, andou escondida pelo interesse em divulgar um destino, e até pela necessidade psicológica do ilhéu se sentir seguro e especial.

Em Março, e pela primeira vez, o pior não foi dramático. A obra feita na última década não será alheia a esse resultado. Enquanto geração, devemos aos vindouros a memória da tragédia e a mensagem da conservação, da prevenção e da inovação, para que se cuide do desastre quando é financeiramente penoso e aparentemente ilógico: antes de acontecer.

O Leste não morre à sede, mas mata de incúria. Vale a pena lembrar aos pequenos.