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Pascal, paixão e aleluia

Tempo pascal, de paixão e de aleluia, em que os mártires se ressuscitam, aqui e agora, como ali e outrora. Tempo alegórico – e apetece-me dizer “Marielle presente” ou “Cabral ka mori” -, de sublimar a escravatura, o cativeiro, a carnagem e a pilhagem. De sublimar a crucificação – e transbordante o nosso calvário, a nossa mortalha e o nosso sudário -, quantas vezes reincidente. Tempo real – concreto esgar da guerra dita santa, mas diabólica, a norte de Moçambique, da pandemia a ceifar vidas no Brasil e da monstruosa ditadura que já se arma em Myanmar (um cheirinho de muitos casos). Tempo, tempo, tempo... ainda luta, minha gente.

Estávamos os dois à beira-rio e era Tejo que nos fazia, liquefeitos, lembrar da frase de Heráclito de Éfeso, por quanto “nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio...pois na segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tão pouco o homem”. E era ali, jusante ao cais da Alcântara, que é onde imagino inspirou Álvaro de Campos a escrever “Ode Marítima” e eu digo-te, como se a existência fizesse uma trégua ao fim da tarde, que não sei qual me amanha e me apanha mais: se isto de “O cais é uma saudade de pedra” ou aquilo de “Espalhai-me nos mares, deixai-me/ nas praia ávidas das ilhas!”

Já vou a meio do romance “Pão de Açúcar” (D. Quixote), de Afonso Reis Cabral e já o recomendo a quem possa ler, não só pelo firme “pulso de escrita” e ressonância narrativa sobre o assassinato de Gisberta Salce Júnior (em 2006, cidade do Porto), mas pelo levantar do véu da intolerância geral e da transfobia particular. Lê-lo ainda pela necessidade, em prol dos direitos humanos e da democracia (algo para além da rigidez dos aparatos), de levantarmos bandeiras mais humanizadas, mais solidárias e mais arco-íris. Incomoda? É importante que vos incomode esta consistência estética exuberante...

Saúdo o livro “Enciclopédia negra” (Companhia das Letras), de Flávio Gomes, Lília Schwarcz e Jaime Lauriano, que escreve e inscreve (em atitude de reparação histórica) o percurso de 550 figuras que marcaram o Brasil. A existência silenciada ou desvirtuada, quando não apagada, de vidas negras, aparece resgatada e caracterizada através de verbetes biográficos e contextualizados, dando razão a quem defenda que o estruturante para a desmontagem do racismo e da hegemonia seja o afrontamento da verdade, o conhecimento. Uma iniciativa assim fazia sentido em Portugal e nos países africanos de língua oficial portuguesa. Fazia sentido no meu país Cabo Verde, onde a pretexto errático de “nem África, nem Europa”, vidas negras são diluídas nas fotos-família, nas biografias, nos livros escolares, nos nomes das ruas, das praças e dos bairros...Venha, pois, à nossa leitura o livro “Enciclopédia negra”!

O encenador e ativista João Branco, de quem me lembrei no passado Dia Mundial do Teatro, discorreu há dias sobre algum espírito soez e daninho (mais do que isso, danoso) perante qualquer iniciativa bem-sucedida nas nossas ilhas, como se uns por na ribalta amarfanhar o brilho da plateia ou se o aplauso a outros fosse para a canalha uma espécie de derrota. Infelizmente, este é o grande mal da Humanidade, em seu paradoxo de desumanidade. Cansa. Cansa muito. Fazer o papel de Sísifo. Carregar sistematicamente a pedra para o alto da montanha. Fazê-lo de forma recorrente. Aliás, sabe bem João Branco, amantes como eu das obras de William Shakespeare, que a inveja é o grande calvário desta vida. Haja redenção!