Crónicas

Coisas do P. C.

Não, não é desses que estou falando: aqui, o P. e o C. , com pontinhos, traduz-se por “Politicamente Correto”, praga insidiosa da chamada pós-modernidade, dizem os mais céticos, duas palavras, duas mentiras: nada existe aí de pós nem de modernidade, é só um “ar do tempo”, por sinal bastante viral e sombrio, por todo o lado completamente instalados os novos polícias do pensamento, ai de quem não seguir a gramática da novilíngua, Orwell já previu há décadas que chegaríamos a isto, mas no 1984 o “big brother watching you” era metáfora do pesadelo totalitário, agora a coisa é servida em versão democrática, popularucha mesmo, no comunicacional netiano todos vigiam todos, quem diria, e os media relatam coisas mirabolantes do P. C., coisas que antes pareciam impensáveis e agora exibem súbito estatuto de uma normalidade não apenas programada, mas suavemente imposta e, pasme-se, alegremente acolhida pelas massas, via demissão do pensamento, há um “diktat” político que emerge e se impõe, as questões de género e as ditas fraturantes são as emissárias do P. C., mas há também o racismo e a inclusão feitos ideologia pura e dura, e sobre tudo isso paira o desvelo de uma nova gramática, a língua não é inocente, pois então, ela sempre construía santos e pecadores, mas agora o tema está por todo o lado, reciclado, da Europa ao Portugal pequenino: e não é que foi preciso encontrar uma escritora não-branca para traduzir para neerlandês a “negritude” da Amanda Gorman? Claro: a matriz binária já era, agora é preciso acolher uma trans-refencialidade da mente, do género e da linguagem, há que vigiar o racismo nas suas manifestações tão subtis, branco só pode traduzir branco, a língua tem cor e a mente também, defendem, sem vigilância apertada a inclusão não é cumprida, já em 2008 o Parlamento Europeu, preocupadíssimo, desenhava o multilinguismo que havia de ganhar terreno até se chegar ao Acordo Queer Ortográfico, e até o sorumbático Conselho Económico e Social da lusa pátria pensou num guia gramatical para instruir os parceiros nas “boas maneiras” de lidar com os géneros sem traumatizá-los, parece que são mais que muitos, os géneros, em Nova Iorque fora identificados 31, então o melhor é padronizar o neutro, camaradas e camarados já não serve...

Mas nem só de linguística se faz o P. C., pois vai sem descanso a “parlamentaridade” quanto às matérias fraturantes, não interessa que o assunto seja de nicho, “as” e “os” zelotas da amoralidade do P. C. estão lá para isso, e então a eutanásia não sai de cena, que importa os mortinhos covid, esses já estão resolvidos, mas falta obrigar o Estado a “homicidar” alguns outros, a pedido deles, “por supuesto”, e talvez de algum sobrinho mais glutão (valerá ainda uma escorrida lágrima sobre a sepultura), mas o cardápio do P. C. não acaba aqui, há que trazer para o Diário da República a possibilidade da inseminação “post mortem”, prever que a mulher possa ainda ter algum rebento do companheiro morto, mas calma, que a sementinha só pode ser inoculada uma vez, prevê a sanha legiferante dos suspeitos do costume, não vá de repente o sepultado deixar em pesada herança um rancho de filhos: é a engenharia social a modelar um mundo novo, não tão admirável como isso, os mitos da igualdade e da inclusão completamente à solta — falsa transparência, liberdade vigiada, ditadura do Politicamente Correto...

Só resta citar o amigo Rui Marote: “Estepilha!”, que este Estado é cada vez mais convocado a meter o nariz onde não é chamado, agora até mesmo entre os lençóis...