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A Máscara da Morte Vermelha

Que as medidas do Governo são por vezes falíveis, incoerentes e arbitrárias já todos o sabemos

Na sua natureza racional, o ser humano é assolado por uma característica deveras curiosa: a criação de padrões entre acontecimentos aparentemente distintos a fim de compreendê-los num plano existencial e holístico. Embora seja desta atividade que surge o conhecimento científico, também é dela que descendem temas mais controversos, nomeadamente as “teorias da conspiração” e as adivinhações.

Por outro lado, entre estes dois campos surge uma lacuna que é preenchida pelo pensamento crítico em relação à sociedade humana que “acidentalmente” acaba por assumir cariz preditivo como, aliás, muito se tem verificado durante esta pandemia devido a várias obras literárias que parecem a ter previsto sem, efetivamente, se terem proposto a tal coisa.

Muitas obras têm sido redescobertas devido às semelhanças dos seus cenários à atual situação em que vivemos. Acredito, contudo, que uma delas não tem merecido a devida atenção: A Máscara da Morte Vermelha de Edgar Allan Poe.

Perante o atual surto de festas ilegais que tem vindo a ser detetado em Portugal e no mundo, parece-me, na verdade, não haver melhor obra para “celebrar” a ocasião. O conto decorre num local assolado por uma peste (mais próxima da Peste Negra do que da Covid-19), onde toda a aristocracia se decide a fechar o castelo do Príncipe Prospero e aí festejar a sua suposta imunidade (e privilégio) enquanto o resto da população perece por causa da sangrenta doença. À boa moda de Poe, o funesto clímax aproxima-se quando, à meia-noite, todos os participantes reparam num convidado desconhecido, trajado com vestes manchadas de sangue e com uma máscara de cariz fúnebre. Trata-se nada mais nada menos do que do “espírito pestífero” que assolava as terras, matando sem piedade as suas vítimas. Perante a incredulidade da classe abastada, todos os participantes do festim acabam mortos pela Peste Vermelha, confirmando-se, assim, a lógica de que a doença não escolhe as suas vítimas.

Contrariamente a esta obra, o estrato social da nobreza já não existe no presente. Por isso, o que aqui se procura criticar são aqueles que agem como ela, ou seja, que agem com sentimento de indiferença em relação àqueles que sofrem devido ao coronavírus e ao confinamento. Enquanto isto, alongam os efeitos negativos que a atual situação acarreta através do aumento do número de infeções que, em si, conduz ao maior número de indivíduos em risco de morte e ao prolongamento das limitações aplicadas pelo confinamento generalizado da população. Distinga-se aqui, claro está, o trabalhador que fura confinamentos para sobreviver no atual contexto de rutura económica daqueles que procuram “fazer festas” sem qualquer segurança e ainda publicar nas redes sociais fotos e vídeos em gesto de escárnio, alguns dos quais ainda relembrando o 25 de Abril sem compreenderem minimamente a responsabilidade da liberdade e da democracia. O gesto não é ofensivo apenas para com o Governo. É ofensivo para com toda a população que está a fazer o seu melhor para lidar com o sentimento de perda que esta pandemia proporcionou tanto àqueles que perderam familiares como àqueles que não sabem como será o seu futuro.

Que as medidas do Governo são por vezes falíveis, incoerentes e arbitrárias já todos o sabemos. Mas não incorramos no erro de assumir que vivemos num contexto normal e que de repente é legítima a participação em festas sem condições mínimas para prevenção da disseminação da doença entre pessoas. A Covid existe e não escolhe quem atacará pelo que não será o espírito de invulnerabilidade dos Prosperos que por aí andam que mudará este facto.

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