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Kintsugi

Levei muito tempo (talvez tempo demais), a perceber que era o que queria fazer

Sobre o tampo do velho Steinway estavam pousados os retratos de família – três gerações. “Este era o meu avô. Morreu em...” – e os olhos, aflitos, sondavam a penumbra da memória que se esvaía – “Morreu em...” Gosto das casas que cheiram a bafio, sobrecarregadas de objectos inúteis: retratos, cartas, madeixas de cabelo em relicários. Casas prestes a afundar-se para sempre, com o seu último (e desmemoriado) tripulante ainda a bordo. Gosto, de as restaurar, de revelar a beleza do que parece já imprestável.

Chama-se kintsugi à arte que no Japão, desde o século XV, é utilizada para restaurar peças de cerâmica colando as partes fracturadas com lacre, ao qual se mistura o pó de um metal nobre. É uma minuciosa e delicada técnica em que o artífice, suturando a ouro ou a prata os cacos do objecto acidentado, neles revela a insuspeitada beleza que resultou do acaso, da incúria humana ou do tempo que, irremediavelmente, tudo quebra e tudo desfaz.

Esta arte de valorizar o imperfeito, de aceitá-lo, de incorporá-lo na nossa vida, este respeito e carinho por tudo o que envelhece e que, parecendo imprestável, pode ainda vir a ser fonte de beleza e de algum ensinamento, parece estar nos antípodas do tempo que vivemos – o tempo dos que compram e deitam fora porque a moda e o consumismo estão na raiz do seu modo de vida e, talvez, de uma sociedade cujo futuro se nos afiguram cada vez mais problemático.

Kintsugi. Levei muito tempo (talvez tempo demais), a perceber que era o que queria fazer. Ou melhor: que era o que, como arquitecto, estava já fazendo sem o saber, cada vez que restaurava um velho edifício, cada vez que implorava ao empreiteiro que conservasse, com todos os seus defeitos, os finos e imperfeitos vidros artesanais, os vistosos lambrequins, as ombreiras fracturadas em cantaria, as massacradas carpintarias de soalhos, rodapés e velhas portas de entrada. Restaurar, seja o que for, é contar uma história em que o tempo e as suas feridas são os principais protagonistas. Penso que é preciso começar a envelhecer para saber contá-la.

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