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Agendar a discussão

Numa democracia adulta, o que se impõe é distinguir falsos profetas

1. Em cima da mesa estão propostas destinadas ao governo autárquico para os próximos quatro anos. Aos cidadãos caberá analisar a sua exequibilidade e não deixar-se maravilhar apenas com a criatividade argumentativa dos candidatos. Embora já se saiba estar em causa o exercício do poder local e a gestão de proximidade da coisa pública, a que a limitação dos orçamentos públicos, em tempo de vacas magras, impôs restrições de monta, continua-se a prometer a lua e arredores, como se num estalar de dedos tudo fosse possível. Numa democracia adulta, o que se impõe é distinguir falsos profetas e histórias de encantar. Aos contendores da liça, exige-se mais do que preparação académica, tarimba partidária, proficiência financeira ou criatividade no verbo; ética e lucidez nunca serão demais, na discussão dos pequenos grandes problemas das pessoas.

2. Sabe o que é gentrificação? O dicionário diz tratar-se do processo de renovação e requalificação urbana e a consequente valorização imobiliária. Uma pesquisa mais alargada esclarece ser um fenómeno já com algumas décadas, na sequência do qual, áreas e bairros degradados normalmente centros históricos de grandes cidades, se convertem em alojamentos de luxo para habitação ou turismo. Podendo ser um processo liderado pelo estado, em regra é a iniciativa privada que executa. Tem a virtualidade de trazer criação de emprego, melhoria da qualidade de vida, com introdução ou renovação de infraestruturas e equipamentos sociais, jardins e espaços de lazer, bem como redução de fenómenos de insegurança e criminalidade. Os responsáveis políticos agradecem. No reverso da medalha porém, obriga ao despejo compulsivo e à expulsão de anteriores habitantes, em regra população idosa, empobrecida, impossibilitada de custear os novos preços da especulação imobiliária no normal negócio do alojamento sujeito aos preços do mercado, à lei da oferta e da procura, e onde quem tem poder económico leva vantagem.

O encanto dos bairros antigos e das zonas históricas está nas pessoas que ali sempre viveram, nas suas rotinas, nas lojas antigas, onde se respira história e memória. Coisas que o boom turístico das capitais está a por em causa, pois se constitui exemplo de reabilitação urbanística e dinâmica económica, tem como moeda de troca a descaracterização social e cultural, a perda de identidade. Agora com a fúria da requalificação urbana para alojamento local, porque dá muito lucro aos senhorios e especuladores, desaparece o antigo comércio tradicional, para transformar tudo em alojamento turístico, ou então estabelecimentos de fast food, cafés gourmet, tudo franchisado, a preços proibitivos às populações locais. O fenómeno da gentrificação urbanística está a operar uma transição de um modelo de estado social preocupado com os mais vulneráveis, para um modelo de estado liberal mais comprometido com interesses económicos, com o consequente aumento das desigualdades sociais. Não terá o poder autárquico uma palavra a dizer?

3. De idade indefinida, ela deambulava pacatamente por aquele cantinho rural. Víamo-la sempre de manhã num dos cafés da zona. Os gatos eram diletos companheiros da sua solidão. Se tinha mágoas, nada deixava transparecer; o ar bonacheirão com que respondia às saudações dos vizinhos aparentava a tranquilidade de quem em paz com a vida, aguardava serenamente o seu desenrolar. Até ao dia. A porta fechada do quintal até altas horas da manhã causou estranheza. E a meio da tarde confirmou-se o pior: a M. tinha morrido. Sozinha, como só tinha sido quase toda a sua vida. Porque a morte, como todos os momentos decisivos da vida humana, é um instante solitário. Estava no quintal da modesta casa. Provavelmente já teria perecido na véspera e assim terá ficado ao relento na quente noite de verão. Como outros casos de idosos sós nas grandes urbes, à margem de instituições da sociedade, sempre escassas nas respostas aos problemas das pessoas...