Não é o sabor do gelado
Podemos continuar a disfarçar a indiferença com sorrisos automáticos
Setembro chega sempre como tempo de balanço e recomeço. O verão termina, o mês das férias fica para trás, e voltamos à rotina. Mas não é a escolha entre baunilha ou chocolate ou até menta que determina a leveza dos dias, o que vai pesando é na verdade, a forma como vemos congelar e perpetuar lugares onde a humanidade e a leveza se vão dissolvendo, onde as relações se tornam mecânicas e automáticas (ainda não cheguei à fase dos “elétricos”) e a presença se reduz numa mera obrigação.
Com a ausência de competência, disfarçamos de formalidade, e a falta de humanidade fica ocultada atrás de palavras ensaiadas.
É fácil ficar, permanecer, segurar-se a um espaço onde nada se exige além do cumprimento da rotina, é confortável e muito natural deixar que o “simmm, simmm, simmm” ecoe, evitando o desconforto de um “não” que poderia abrir caminhos diferentes. E nós, quantas vezes disfarçamos com um sim?
Mas o “sim” vazio não constrói, ele cala, acomoda, protege, sim, mas ao preço de nos roubar a possibilidade de transformação e muitas vezes deixar passar a um estado de evolução.
O medo de arriscar, de criar um gesto inédito, de pronunciar uma verdade simples, de escutar sem pressa, ergue um muro que não se vê, mas se sente. E atrás dele ficamos a girar em círculos, agarrados a cargos vazios, a funções sem alma e a relações sem vida.
Não é o sabor do gelado que devemos questionar, mas o frio que se espalha nas nossas atitudes e nos gestos. A dificuldade de ouvir com atenção, de olhar para o outro sem pressa e de reconhecer que a diferença pode enriquecer.
Para mim, haverá sempre uma escolha.
Podemos continuar a disfarçar a indiferença com sorrisos automáticos, ou podemos arriscar a coragem de ser verdadeiros. Podemos repetir “simmm” até perdermos a voz, ou podemos recuperar a ousadia de dizer “não” às máscaras, ao medo, à mediocridade porque será este “não” que se irá traduzir numa escolha diferente, numa nova porta aberta.
Porque não é o sabor do gelado que ficará na memória, mas a forma como ousamos, ou não, lançar a transformação. E talvez, um dia, quando aprendermos a ouvir e a ser ouvidos, quando a escuta for maior do que o receio, possamos saborear a vida não pelo açúcar que engana, mas pela verdade que aquece e nos devolve àquilo que, de mais humano, sempre nos pertenceu.