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Crónicas

Uma brisa de fim de Verão

O corpo bronzeado trazia dois meses e meio de vida à beira-mar, tão despreocupados como devem ser as existências de adolescentes de 16 anos

Umas nuvens brancas e gordas ocultavam o sol quente e, no canteiro por debaixo das ameixeiras, os ‘não-me-deixes’ começavam a perder a cor e a frescura. Não era difícil perceber a mudança subtil no quintal e na aragem que chegava do ribeiro, mais uns dias e a exuberância das férias grandes seria engolida pelas primeiras chuvas. Na casa do Laranjal isso significava arrumar o biquini e a toalha da praia que, ali, naquele lugar, as pessoas seguiam o ritmo das estações, das fases da lua, da chuva e do sol como as plantas no jardim e na fazenda.

Aqueles últimos dias de Agosto, a correr para o autocarro e para o Lido, com o bronzeador de cenoura, o champô e as duas sandes de ovo mexido com chouriço, embrulhadas em guardanapos papel, sabiam a fim de festa. Os estudantes universitários já não jogavam às cartas em cima dos muros; havia menos adultos e menos miúdos na fila para as waffles com chantally. E sobrava espaço para nós, os que ainda tinham tempo e nenhuma obrigação, mas, de uma certa maneira, também estávamos cansados de apanhar sol e saltar para água, de fazer golfinhos na piscina e nadar até à prancha que, todos os anos, ficava a flutuar como uma jangada de borracha e plástico, onde se podia ganhar fôlego.

No regresso pela Estrada Monumental faltava a vontade para estender o braço e pedir boleia a quem passava de carro; até isso tinha perdido a graça, como perdem todas as coisas com o cansaço, com a sensação de enjoo e tédio que traz. O corpo bronzeado trazia dois meses e meio de vida à beira-mar, tão despreocupados como devem ser as existências de adolescentes de 16 anos. A minha foi, apesar da falta de dinheiro, de não ter as roupas mais bonitas e de ser transparente para todos os rapazes que achei bonitos e interessantes. O que era azar, mas estava longe de ser uma tragédia.

E, ali estava eu, misturada com as outras pessoas, no 12 com destino ao Jamboto, a cheirar a creme Nivea e a champô, com a toalha molhada na mochila e sem perceber que, naquele autocarro cheio, estava do lado dos privilegiados, dos que podiam estudar e passar três meses de férias e ainda ficar entediados. Quando saísse, quase no fim da carreira, só tinha de subir três lances de escadas e correr para a mesa, estaria lá um jantar à minha espera, uma televisão a cores para ver as notícias e a telenovela ou a sessão da noite. Ou podia acender o candeeiro da mesa cabeceira e ler um livro, meu ou emprestado, não fazia diferença.

Lá fora, no mundo que se via pela televisão e até na vizinhança, havia vidas complicadas, daquelas enredadas nos muitos nós que dá a miséria e a ignorância. As raparigas que não estudaram por causa dos pais, todos os que foram trabalhar mal saíram da escola para pagar a conta da venda e todos os que acharam que não tinham sequer direito a mais do que o 2º ano na telescola. Afinal, o que iam eles fazer com mais do que isso, diziam, às vezes, as senhoras que a minha mãe encontrava no descampado, durante as festas da Visitação.

A minha mãe e o meu pai não tinham uma resposta pronta, mas nunca se desviaram do plano e isso deu-nos Verões intermináveis, dias de praia até cansar e uma adolescência segura e protegida. A Lina Marta podia ter vergonha do tamanho das ancas e das roupas esquisitas e ficar magoada por nenhum rapaz a ver. E, apesar de tudo, foi muito feliz. Hoje sei isso; aos 16 anos tive algumas dúvidas.