A loja, esse lugar de entulho
No interior daquelas máquinas sem préstimo podia haver uma peça que desse jeito
O meu pai gostava de cães, do amor dedicado e da orelha baixa à voz grossa e às ordens e dava-lhe gosto tê-los à roda quando metia a foice ao ombro e ia ver a fazenda. Os cães, quase sempre aos pares, iam com ele ver a levada e o Poço das Freiras, atravessavam o caminho até ao palheiro, passavam pelas bananeiras e subiam os degraus da entrada à frente daquele homem de meia idade, com a foice no ombro e a barreta na cabeça. O meu pai parava primeiro na loja, o anexo onde guardava todas as coisas importantes.
As ferramentas e os garrafões de vinho, tudo misturado com electrodomésticos velhos e avariados. O mestre Gabriel acreditava que no interior daquelas máquinas sem préstimo podia haver uma peça que desse jeito mais tarde. A verdade é que, tal como gostava de cães, também gostava de ferro velho e essa era mais uma história triste que trazia agarrada desde miúdo. Ainda menino, um pouco antes de se tornar moço da fazenda de uma família importante, tentou ser aprendiz numa oficina de ferreiro.
O mestre não o quis, afugentou-o como quem enxota um incómodo, que se o pedido fosse sério teria de se apresentar com o pai, mas o meu avô era uma pessoa sem ambição que passava muito tempo na venda, onde a dívida do rol crescia. E, por isso, aos 10 anos, sem a escola feita, fez-se moço, o grau mais baixo da escala de profissões no Laranjal dos anos 40. O ‘moço’ era um posto sem futuro, fazia recados, ia levar e trazer o almoço, mas foram esses salários que saldaram a dívida na venda. E disso o meu pai tinha orgulho.
Do resto da história não, a mágoa continuava lá sempre que a repetia. Eu ouvi-a muitas vezes, acho que na maior parte do tempo o meu pai falava mais ele próprio, a filha que o seguia para todo o lado era quase como os cães, uma sombra que o acompanhava aos fins de semana, quando dava descanso das obras. Ali, naquela loja cheia de entulho, podia ser outro, o homem sensível, que olhava para o céu e sabia dizer onde estava o Carreiro de São Tiago ou prever se vinha calor ou vento.
Ou o pai que contava histórias, tristes e alegres, e não escondia o que era mágoa, o que era bom, bonito ou o que era sonho. Sonho era fazer uma viagem à Índia ou ter os filhos com estudos, que isso valia mais do que o dinheiro no banco e todas as coisas que pudesse ter e comprar. Depois olhava para mim e afugentava-me da loja, daquele lugar só dele, dos cães e dos amigos que às vezes vinham conversar e beber um copo de vinho seco com um ‘dentinho’ de cebolinho em vinagre. Havia sempre uns frascos nas prateleiras.
“A tua mãe está à tua espera, vai fazer tudo o que tens para fazer e não a enerves mais”. E eu tinha muito que fazer aos sábados, havia camas para fazer, pó para limpar, mas podia sonhar com viagens e com os estudos. Se dependesse de mim, o meu pai teria esse sonho para mostrar; se dependesse do meu pai, eu teria os estudos que quisesse. E nenhum traiu essa promessa dos sábados, quando a casa do Laranjal tinha ainda um portão pequeno, havia uma parede de heras, a loja ficava mesmo junto ao ribeiro e estávamos todos juntos ao almoço de domingo.