Como atravessar crises sem perder a esperança
Da última vez que o FMI passou por Portugal, o meu pai já estava reformado e foi a mim que a crise atingiu em cheio com um despedimento
Entre o dia chuvoso de 1989 em que corri para votar no antigo dispensário do Laranjal e esta última convocatória para ir às urnas, perdi a conta às eleições e aos governos. Sempre são 36 anos e, nesse tempo, não foi apenas o país a mudar, a fazer alianças e a quebrar acordos, a encher-se de esperança para a enterrar numa crise antes de voltar a seguir caminho. Essa é também a minha história. Não são páginas de estudos sobre a democracia, a política, os partidos e a economia ou relatos em segunda mão, é a minha vida.
O primeiro aperto do FMI sentiu-se lá em cima e eu lembro-me bem, foi no ano em que entrei para a escola. E quando o professor Baltazar me perguntou a profissão do meu pai eu respondi sem hesitar: desempregado. E, de facto, o meu pai não tinha emprego fixo, nem patrão, vivíamos dos biscates que fazia, aqui e ali, onde fosse preciso um mestre. A empresa onde trabalhava fechou depois do 25 de Abril e, nos anos seguintes e até se reformar, foi assim que trabalhou, de uma obra para outra, com o dinheiro contado e uma reserva debaixo do forro da gaveta da cómoda.
A minha mãe geria as nossas finanças e fazia milagres para nos alimentar, vestir e nos mandar para escola e bordava com a telefonia ligada, para ouvir música, os programas de saúde e educação e as notícias. E ouvia tudo, o bom e o mau, as guerras de lugares que não sabia sequer onde ficavam e estava a par de todas as crises na política em Lisboa. A minha mãe não fazia ideia de como era a cidade, nem onde ficava a Assembleia da República, mas conhecia os ministros, os líderes dos partidos da oposição. Não deve ter sido fácil para uma dona de casa com a 4ª classe de adultos acompanhar aquela queda sucessiva de governos.
Eu não me esqueço da aflição que se viveu quando, depois de várias eleições e outros tantos governos, o FMI voltou para meter ordem nos preços que não paravam de subir e garantir que não se ia à bancarrota. O que seria de nós? A minha mãe fez o mesmo que o FMI, cortou tudo e foi assim que entrei na adolescência. A opção era entre o essencial e o acessório e eu tive de viver com isso, sem roupas da moda, sem gira-discos para tocar os singles. Na igreja, deixei de me ajoelhar para não se ver os estragos nas meias solas dos sapatos.
Vivemos de muito do que dava a fazenda, do que vinha do galinheiro e eu tive roupas feitas com os restos dos tecidos da alfaiataria do meu tio Humberto. As minhas tias e a minha prima Ana, às vezes, ofereciam uma t-shirt, que eu usava até romper, mas no dia em que corri para votar pela primeira vez a nossa vida estava a melhorar. Ou parecia muito melhor por comparação com tudo o que tínhamos passado. Acho que foi isso que me animou, além do optimismo dos meus 18 anos, da sensação de fazer parte, de contar para a história.
Os anos de fartura que se seguiram e as minhas circunstâncias - as minhas lutas pessoais - trouxeram um certo fastio, um encolher de ombros. De uma maneira ou de outra, votasse ou não, haveria governo e tudo continuaria mais ou menos como antes. E quando se olhava para frente, para o futuro, não se via ameaças, nem sequer uma crise como aquelas que atravessaram a minha infância e adolescência. E eu já não tinha a minha mãe, nem a sua voz avisada, preocupada com a possibilidade daquela abundância terminar.
Da última vez que o FMI passou por Portugal, o meu pai já estava reformado e foi a mim que a crise atingiu em cheio com um despedimento colectivo e o papel para entregar no centro de emprego. E tal como o meu pai tive de aprender a aproveitar as oportunidades de trabalho, tive de me reinventar aos 42 anos. Eu e os outros que foram apanhados por aquele despedimento colectivo. Às vezes encontro-os, na rua, a maioria seguiu caminho, mudou de profissão e encontrou maneira de trabalhar e ser feliz, mas o trauma do desemprego está lá, não é coisa que se esqueça.
Mesmo quando se segue caminho fica a certeza que as crises vão e voltam e fazem vítimas, mudam as nossas vidas, deixam marcas. As decisões de atenuar ou agravar os impactos são dos políticos, os tais que convém escolher. Tantas eleições depois, já não tenho o entusiasmo daquela miúda, mas aprendi que não posso, nem devo encolher os ombros. A minha mãe sabia isso e era uma dona de casa com a 4ª classe de adultos.