Querido Pai Natal
Querido Pai Natal, já há algum tempo que não lhe escrevo. Inevitavelmente cresci e a minha crença em si desvaneceu-se. Apesar disso, sempre mantive um respeito imensurável por si e pelo trabalho que se compromete a fazer, ano após ano, nos ininterruptos cenários idílicos criados pelos crânios das crianças. É num estado de calamidade que lhe torno a dirigir uma carta natalícia que confesso ser um tanto inédita e inesperada.
Querido Pai Natal, enquanto ex-criança (fisicamente falando), em nome de todas as crianças deste mundo, espero que as salve. Acredite que a imensidão de listas de brinquedos, bonecas, carrinhos, jogos, serão a mais insignificante das suas dores de cabeça.
Creio serem secundárias as prendas que escolherá dar aos infantes bem ou mal comportados. Houve, de facto, gente muito mal intencionada e com comportamentos censuráveis, portanto, a missão que lhe incumbo é a de salvar as crianças dos próprios pais. Pode ter andado desatento ao longo destes anos - sei-o bem, pois nunca me chegou um pedido de amizade da sua parte no Facebook ou um mero follow no Instagram - mas a insolência paternal tomou conta disto tudo. As crianças são, hoje, uma arma de arremesso mediático para o alcance de visualizações, comentários e partilhas. Mal saem do útero são rodeadas de ring lights - como paparazzis que invadem a vida pessoal duma celebridade de Hollywood - enceguecidas por luzes ultravioleta, com a mesma intensidade dos holofotes que procuram, inconsequentemente, salvaguardar a visão dum jogo de futebol na Choupana, num dia de nevoeiro protuberante. Seria, porventura, uma situação tolerável não fosse o descaramento com que partilham ao mundo estes recém-vindos seres. Após a sessão fotográfica do primeiro dia, seguem-se as sessões fotográficas do segundo dia, do terceiro dia, do primeiro xixi, do primeiro cocó, das primeiras mãos sujas dos pais que trocaram pela primeira vez uma fralda, da primeira semana de aniversário, da segunda semana de aniversário, da primeira saída do quarto, da primeira saída de casa, do primeiro cabelo encaracolado, do primeiro vestígio de cera nos ouvidos, do primeiro riso, da primeira baba, e, se fosse para ficar aqui a enumerar as restantes e incessantes sessões fotográficas, esta carta não chegaria atempadamente às suas mãos.
Os pais borrifaram-se para as primeiras palavras dos próprios filhos. O que importa agora são as parcerias que os filhos conseguirão proporcionar. Achava que a laboração infantil, pelo menos em Portugal, tinha sido abolida ainda nem eu havia brotado. A crua e conspícua verdade é que, em pleno século tecnológico, temos novos escravos sem idade sequer para falar.
Mais caótico o cenário se compõe, à medida que a criança vai crescendo. Esta indecência percorre, sem quaisquer preconceitos, todas as parentalidades. Desde pais sem qualquer mediatismo a afamadas figuras públicas. Condeno ambas as situações, mas, a meu ver, a segunda opção padece duma irresponsabilidade tremenda aliada a salientes traços narcisistas, egocêntricos e até mesmo maléficos.
Por norma, as redes sociais não são destinadas a menores de treze anos, ou até a menores de dezasseis anos. Grande razão para isso são os riscos de exposição que as redes poderão açambarcar, embaraçando a identidade destas indefesas crianças. Infelizmente, não é por isso que a negligência paternal deixou de vigorar. Os filhos são modelos sem consentimento real para as publicações dos pais, que os fotografam sem parar, como se estivessem a ver diferentes animais num jardim zoológico. Sugam os filhos para tudo, seja para uma publicidade de champôs, de fraldas, de compotas, de cereais, ou seja, apenas para submeter os filhos a uma feira de vaidades. Exploram-nos sem deixar quaisquer resquícios de atenção, como se ordenhassem uma vaca até a mesma esgotar o seu leite. Poderia dar-lhe inúmeros exemplos, mas um que me deixou severamente melindrado foi o de Jorge Kapinha que, em 2023, no seguimento da apendicite do filho com nove anos, decidiu documentar, expor e capitalizar a vulnerabilidade dum momento tão privado, e que somente ao próprio filho concerne, nas redes sociais.
Querido Pai Natal, o meu desejo seria, por esta hora, já ter finalizado a minha redação. Porém, acontece que as crianças não são as únicas afetadas por estas estólidas exposições. Um dia serei idoso e, já suficientemente aterrorizado com a chegada desse estádio, dou por mim a visualizar um vídeo que me deu vontade de cometer auto-eutanásia como a que julgo dever sentir nos primeiros indícios de vetustez.
Se, por um lado temos seres inexperientes, novinhos de fábrica, sem qualquer auto-determinação, a serem explorados diariamente, a exploração e a usurpação das terceira e quarta idades são o cúmulo da vergonha originada por uma criminalidade incruenta.
Sem expor quaisquer identidades, o vídeo mostra uma velhinha completamente debilitada, acamada, dependente, a comer uma sopa, dada à boca pelos netos, enquanto se baba, e a ser tratada como se fosse um bebé. A premissa pode até parecer um sinal de amor incondicional derivado duma relação sentida entre os netos e a avó e até o seria, não fosse a abominável partilha numa rede social.
A pobre idosa já não consegue falar, tem uma câmara apontada para si sem o seu aval, está decrépita e dependente de outros e, ainda mais, com isto, subjugada à javardice e à sofreguidão da exposição. Não só o trato no diálogo é desmedido, em que falam com uma sénior de 90 anos como se fosse um bebé de três meses, só porque o mesmo também não consegue falar. Não é fofice, isto é uma humilhação pública. É querer capitalizar a indignidade dos últimos momentos de vida de alguém tão próximo e querido, com o pretexto de que está a mostrar o que é o amor incondicional. É invadir e desrespeitar a vida dessa mesma pessoa que, fruto da idade, perdeu a sua autonomia e independência - como se fosse uma presa combalida cercada por hienas. Digo já, de antemão, aos meus futuros filhos e netos que se amanhem e que, na ocasião de me visitar a um lar ou até à minha própria casa, nas minhas últimas gotas de sanidade, deixem o telemóvel em casa.
Querido Pai Natal, peço-lhe decência! Urge salvar as nossas crianças e os nossos idosos antes que seja tarde demais.