Pode uma câmara forçar a reabilitação por parte dos privados?
Na edição de hoje do Diário, no espaço reservado às Cartas do Leitor, o Sr. Damião de Freitas lamenta que no coração do Funchal haja milhares de metros quadrados, abandonados há anos, dezenas de prédios bloqueados com blocos de cimento em ruas como a de São Pedro, Ferreiros, Carreira, Pretas, Mouraria e João Tavira, no que chama de “vergonha administrativa”. Compara com o caso da cidade do Porto onde o presidente da Câmara Rui Moreira “forçou os proprietários a renovar, os prédios abandonados”. E defendeu que Cristina Pedra, a presidente da Câmara Municipal do Funchal, tem o poder para fazer o mesmo, ou seja, pode obrigar os privados a reabilitar. Será verdade?
O Regime Jurídico da Reabilitação Urbana tem entre os princípios o da responsabilização dos proprietários e titulares de outros direitos, ónus e encargos sobre os edifícios, conferindo-se à sua iniciativa um papel preponderante na reabilitação do edificado e sendo-lhes, nessa medida, imputados os custos inerentes a esta actividade. Tem também o princípio da subsidiariedade da acção pública, garantindo que as acções de reabilitação urbana relativas a espaços privados são directamente promovidas por entidades públicas apenas na medida em que os particulares, quer isoladamente quer em cooperação com aquelas, não as assegurem ou não possam assegurá-las.
Diz o artigo 6.º da referida lei que os proprietários de edifícios ou frações “têm o dever de assegurar a sua reabilitação, nomeadamente realizando todas as obras necessárias à manutenção ou reposição da sua segurança, salubridade e arranjo estético”.
O Regime Jurídico da Reabilitação Urbana prevê a operação de reabilitação urbana sistemática, com vista à reabilitação concertada do espaço público e à regeneração das malhas urbanas existentes. A delimitação das áreas de reabilitação urbana em documento próprio é da competência da assembleia municipal, sob proposta da câmara municipal. A aprovação de uma operação de reabilitação urbana sistemática abre portas a todo um conjunto de instrumentos de execução de política urbanística.
Diz o artigo 54.º que a câmara ou a entidade gestora por si designada pode utilizar, consoante o tipo da respectiva operação de reabilitação urbana, a imposição da obrigação de reabilitar e obras coercivas; a empreitada única; a demolição de edifícios; o direito de preferência; o arrendamento forçado; as servidões; a expropriação; a venda forçada e a reestruturação da propriedade. Assim, segundo o Regime Jurídico da Reabilitação Urbana, há obrigação de reabilitar e obras coercivas.
Caso seja atribuído a um edifício ou fração um nível de conservação 1 ou 2, a entidade gestora pode impor ao respectivo proprietário a obrigação de o reabilitar, diz o artigo 55.º. “Quando o proprietário, incumprindo a obrigação de reabilitar, não iniciar as operações urbanísticas compreendidas na acção de reabilitação que foi determinada, ou não as concluir dentro dos prazos que para o efeito sejam fixados, pode a entidade gestora tomar posse administrativa”, diz a lei. Pode ainda recorrer aos regimes de expropriação ou de venda forçada.
No caso de haver interessados incapazes, ausentes ou desconhecidos, sem que esteja organizada a respectiva representação, a Câmara ou a entidade gestora pode requerer ao tribunal competente que lhes seja nomeado curador provisório.
Ainda segundo a referida lei, pode requerer a determinação do nível de conservação de um prédio urbano, ou de uma fração, compreendido numa área de reabilitação urbana. Caso seja atribuído a um prédio um nível de conservação 1 ou 2, deve ser agravada a taxa do imposto municipal sobre imóveis, nos termos legalmente previstos para os edifícios degradados.
A Câmara ou em quem delegar, possui competência para identificar os prédios ou frações que se encontram devolutos e aplicar um regime especial de taxas municipais, constante de regulamento municipal, para incentivo à realização das operações urbanísticas, nomeadamente ao nível de IMI, IMT, dedução de IRS e IVA.
No caso do Porto, o município promoveu a Operação de Reabilitação Urbana do Centro Histórico do Porto, de tipo sistemática. Começou ainda com Rui Rio e continuou em 2011 com a aprovação do ‘Projecto Preliminar de Conversão da Zona de Intervenção Prioritária em Áreas de Reabilitação Urbana’. O município transferiu para a Porto Vivo, Sociedade de Reabilitação Urbana da Baixa do Porto, a elaboração dos projectos de delimitação de sete áreas, cobrindo na sua totalidade a referida zona de intervenção. Lisboa segue pelo mesmo caminho na zona do Parque das Nações.
Em termos de Área de Reabilitação Urbana (ARU), instrumento que define a estratégia de reabilitação urbana, as medidas e incentivos, o Funchal aprovou três: a ARU do Centro Histórico do Funchal; a ARU da Ribeira de João Gomes e a ARU da Zona da Corujeira e Tornos. No PDM estão identificadas a ARU 01 Ribeira de João Gomes (Matadouro e zona envolvente); a ARU 02 Viveiros/Fundoa (Espaço multigeracional e zona envolvente); e ARU 03 Quinta do Poço.
A ARU do Centro Histórico foi na altura designada Cidade ComVida. Foi criada em 2014, ia da Ribeira de São João até São João, passando pelo Bairro dos Moinhos, Arrifes, Paiol, Bairro de São Pedro, Conde Carvalhal até à Zona Velha. Com base nesta ARU foram identificados 141 edifícios devolutos e em ruínas.
Desta ARU nasceu a Operação de Reabilitação Urbana, onde são identificadas as intervenções a realizar pelo sector público e pelo privado. O prédio da Felisberta foi uma das intervenções realizadas pela Câmara no âmbito desta ARU e com recurso à expropriação, embora seja pouco utilizada.
A par disto, as câmaras podem fazer dotação orçamental para aquisição de prédios e até para investimento nos próprios edifícios, nomeadamente para transformação para habitação. Podem também adquirir, Os municípios em muitas situações têm direito de preferência.
Apesar de haver legislação de suporte, habitualmente as Câmaras ficam-se pela notificação e usam a posse administrativa nos casos de incapacidade financeira ou recusa, mas apenas em situações de risco, nomeadamente para retirar partes que ameacem a segurança ou vedar prédios devolutos. Nestes casos fazem as intervenções e enviam a conta para o cabeça-de-casal ou para os herdeiros e fica registada a despesa nas finanças, como se fosse uma penhora. Mas o envio de ofícios e a duplicação do valor do IMI pouco efeito têm surtido em termos e promover a reabilitação do património por parte dos privados.
Perante a legislação disponível e acções já realizadas consideramos ser verdadeiro que as Câmaras podem fazer uso dos instrumentos legais em vigor e incentivar/forçar a reabilitação por parte dos privados dos prédios devolutos ou em mau estado.