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Quanto resta da noite?

Vivemos dias encrespados. “Ferrugens cintilam no mundo”, como declara o poema de Tolentino Mendonça.

Na nossa terra agravam-se e generalizam-se as tensões, contradições e injustiças sociais. Entre tantas outras expressões das multiplicadas desigualdades sociais, acumulam-se fundamentalismos, xenofobias e racismos, na fábrica na qual se produzem ideologias, organizações e práticas nazi-fascizantes. É o tempo da noite.

No seu livro O preço da riqueza (Pilhagem ambiental e a nova des-ordem mundial), Elmar Altvater faz o retrato do tempo presente: «reiteram-se e intensificam-se as actividades de apropriação, exploração e predação de recursos naturais, do meio ambiente ou da ecologia, em todos os continentes, ilhas e arquipélagos, inclusive mares e oceanos, por parte de empresas, corporações e conglomerados transnacionais. Além dos recursos minerais e hidrícos, também os vegetais e animais são explorados, predados ou simplesmente dizimados. Poluem-se as águas e os ares, as cidades e os campos, a natureza e a sociedade, graças à globalização do capitalismo. Assim continua a privatização do planeta Terra». É o nosso tempo. O tempo da noite.

É evidente o predomínio da lógica do capital em praticamente todas as esferas da vida social. O neoliberalismo prossegue uma campanha inexorável contra tudo o que possa ser ou parecer social, de modo a priorizar tudo o que possa ser ou parecer económico.

O que está em causa é uma rutura histórico-social, uma viragem político- cultural, numa época de crise das escatologias, dos territórios e fronteiras, tradições e memórias, convicções e imaginários.

De acordo com Octavio Ianni, em Capitalismo, violência e terrorismo, tudo isto radicaliza o desencantamento do mundo, onde é implacável a indústria cultural, ativa fabricadora da cultura nazi-fascista, sempre que «prioriza, enfatiza ou exacerba uma dimensão dos factos, do que se pode considerar como um registo dos acontecimentos, mas acentuando apenas, ou principalmente, um aspeto, precisamente o que se supõe como espetacular ou que se fabrica como espetacular. Aí floresce uma parte importante da cultura nazi-fascista, o culto da violência».

Quanto resta da noite?

Este também é o novo patamar da história onde germina a aurora. Requerem-se diferentes leituras, outros nexos, articulações, repostas no que diz respeito ao diálogo entre os povos, na valorização de singularidades e multiplicidades socioculturais, no que envolve as relações trabalho capital, no recolocar a luta por uma sociedade justa, na criação de novas condições de transformação da sociedade, para a extensão da democracia a todas as áreas da vida.

Clamamos com o profeta, “Sentinela, quanto resta da noite?” (Isaías 21,11).