Profeta ateu niilista à busca de esperança. Conto real

Ao iniciar o ano 2024 chovem os votos de bom e feliz ano novo envolvidos em esperanças de que assim seja. Em tempo de Natal as narrativas do nascimento do Menino Deus falam da visita dos Magos e do massacre dos meninos de Belém. José e Maria vão ali para se recensearem por ordem do Imperador Romano que tinha necessidade de controlar o número dos seus pagadores de impostos. Os judeus eram colonizados dos Romanos e tinham que pagar tributo. Se dermos saltos históricos, encontramos esta relação de judeus colonizados por outros poderes a quem tinham que pagar tributo: regiões de domínio muçulmano, Espanha, Portugal e regiões russas em diversos graus. A situação mais violenta aconteceu na Alemanha nazi, na Ucrânia e Rússia, em que aos judeus e outras etnias foram extorquidos os seus bens e perdiam a liberdade e a vida.

Nos últimos dias de 2023 tive uma surpresa, quase um sobressalto de que um dos maiores niilistas ateus do século XX, afinal, talvez não tenha defendido uma filosofia tão absurda como se tem apregoado. É bem conhecido o autor do Ser e o Nada, e da Náusea, cabecilha dos existencialismos ateus. Os que possam estar surpreendidos com o que estou a escrever de Jean-Paul Sarte abram a Internet em Bariona e verão dezenas de sites esclarecedores. Deixo alguns em links nos botões ver aqui no texto.

Sartre foi muito influenciado por Immanuel Kant, Hegel, Nietzsche, Heidegger, Kiekgaard. Quando em 1957 num curso de férias em Paris, o Café Deux Magots, Saint Germain, era uma atração Sartriana de existencialistas. A surpresa: Sartre pelo Natal de 1940, preso no campo de concentração nazi de Stalag 12D, Treveris, escreveu, ensaiou e representou para três grupos de dois mil prisioneiros cada, uma peça de teatro sobre o “Mistério do Natal” que foi depois ocultada durante muito tempo. Em 1962 Sartre declarou que tinha aceitado fingir que acreditava que Jesus Menino trouxe a esperança ao mundo: “O facto de me ter debruçado sobre o tema da mitologia do cristianismo não significa que a direção do meu pensamento tenha mudado nem sequer por um instante durante o cativeiro”. Tratava-se simplesmente, de acordo com os sacerdotes prisioneiros, de encontrar um tema que pudesse tornar realidade, nessa noite de Natal, a união mais ampla possível entre cristãos e não crentes” (Sartre 31.10.1062). Susana Mexia, em artigo recente sobre aquela peça de teatro, pergunta se “o homem está mesmo condenado à liberdade”? A professora de filosofia, no seu artigo, comenta que o conflito dramático mais radical a que a liberdade pode aspirar é aceitar a esperança ou rejeitá-la. E Sartre, no seu papel de Baltasar, diz no final do libreto: “aquela verdade que Cristo vos veio ensinar à terra (é que) não sois o vosso sofrimento” nem o vosso desespero; “o Homem supera-se infinitamente”. O drama gira à volta dos impostos que os Romanos aumentam nas aldeias à volta de Belém e o chefe da aldeia de Bethaur Bariona instiga os habitantes a reagir negando-se a ter filhos, mas, quando corre a notícia do nascimento do Menino Jesus, a esposa de Bariona está para dar à luz e o pai nesse mesmo dia decide não matar o menino anunciado como Messias, como tinha pensado. Vai, antes, protegê-lo arriscando a sua vida perante os Romanos que iam matá-lo como corriam vozes na região. Ele vai fazer tudo para facilitar que Maria e José escapem com o menino (Ver aqui).

Será que Sartre é sincero quando em 1962 diz que “não mudou nem sequer por um instante” como se fosse uma infâmia mudar? Mas há mais. Benny Lévy, seu secretário, pouco tempo antes da morte de Sartre, em 15 de abril de 1980, recolhe a entrevista testamento disponível em Mimesis com o título do estrato“La speranza oggi” (Ver aqui) em que o diálogo gira à volta de possíveis mudanças no pensamento de Sartre, com Lévy a argumentar que mudou e ele a negar. Apesar de um certa reação à alegada mudança em Sartre, Massimo Recalcati aduz que a palavra esperança é alheia ao uso sartriano (Ver aqui). Mas parece que Sartre terá mesmo defendido na entrevista que a esperança e a fraternidade são relações primárias do homem. O título é mesmo: “Há esperança! Assim Sartre mudou de ideia”. E pergunta-se: trata-se de uma abjuração”? Como se tornou possível que Sartre que defendia que “o inferno são os outros”, agora diga: “O que é necessário para uma moral é ampliar a ideia de fraternidade até que ela se torne a relação única e evidente entre todos os homens”. Parece citação do Papa Francisco!

Talvez eu não tenha assimilado bem, mas pergunto-me se a Jean-Paul Sartre não reteve sementes mentais da experiência de cativeiro desse Natal de 1940 passado no campo nazi e da criação genial da sua peça “Bariona”, apesar de alegar que foi um faz de conta cristão para responder aos capelães do campo de concentração? Numa carta a Simone Beauvoir saboreia e surpreende-se de o seu “Mistério de Natal” ter feito chorar alguns dos atores; e Bernard-Henry Levy testemunha que desde essa experiência Sartre terá voltado as costas à bela metafisica pessimista. E o Pe. Marius Perrin, capelão da campo, acrescenta que “os homens de Bariona correm talvez para a sua morte (…) para que a esperança dos homens livres não seja assassinada”. Em 1980, enfermo, Sartre escreveu: “O desespero retorna para me tentar (….) O mundo parece feio, mau e sem esperança. Não, esse é o grito de desespero de um homem velho que vai morrer em desespero. Mas é justamente a isso que eu resisto. Sei que vou morrer na esperança. Mas sei que a esperança precisa de uma base”. E ele conhecia essa base: o Menino de Belém.

Aires Gameiro