Crónicas

As linhas com que desfazemos uma flor

O relatório «Crianças em Portugal e ensino à distância: um retrato», incluiu as Regiões Autónomas, e podemos constatar que a habitação condigna é um dos problemas que mais afeta as crianças da Região

O grande objetivo de um dia comemorativo internacional, mundial ou global é chamar a atenção ou reconhecer a importância daquilo que se assinala ou comemora. Por exemplo, o Dia Mundial da Criança, tradicionalmente comemorado em Portugal a 1 de junho, pretende reafirmar a importância de colocar as crianças e o seu melhor interesse no primeiro lugar.

Esta é uma data que nos convida a refletir sobre o facto de as crianças terem sido, e continuarem a ser, vítimas privilegiadas dos impactos devastadores das guerras engendradas por gente que se diz adulta, vítimas de múltiplas violações sistemáticas dos mais elementares direitos humanos. De entre estes, destaco os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, que tantas vezes contam com a conivência de pessoas e entidades que deviam zelar pela segurança das crianças e adolescentes mas que, ao invés, lavam as mãos ou tentam mesmo encobrir os crimes, posicionando-se ao lado de quem agride e pressionando as vítimas para que voltem atrás e retirem as queixas.

Não esqueçamos também que vivemos numa realidade que continua a relativizar situações de violência doméstica em que as crianças são vítimas, principais ou colaterais, com consequências trágicas em alguns casos. A pandemia veio, durante os confinamentos, mascarar esta realidade. Mas o facto é que o regresso às escolas registou um aumento das sinalizações de crianças expostas à violência no seio familiar, numa realidade em que os castigos corporais e físicos ainda fazem parte da educação, perpetuando-se uma prática que não é admissível numa Região e num País que reconhece as crianças como sujeitos de direito. Sublinho, a título de exemplo, que o relatório anual da APAV relativo a 2021, no que diz respeito a vítimas menores, registou um aumento de 14,9% face aos anos anteriores.

Mas para além destas violações dos direitos das crianças que são mais evidentes, a verdade é quem um dos problemas que mais afeta as nossas crianças é a pobreza infantil e os efeitos duradouros que esta provoca. Crescer num contexto de privação, para além de pôr em risco o desenvolvimento integral, condiciona em grande medida as oportunidades de vida das crianças afetadas por essa condição.

Ainda que não exista um diagnóstico à pobreza infantil na Região, há indicadores que nos permitem perceber que este é um problema premente. Desde logo, o facto de, em 2021, continuarmos a ser a região do País que tem a maior taxa de risco de pobreza ou exclusão social indicia que obviamente as nossas crianças são necessariamente muito afetadas por essa realidade. Esta realidade é confirmada pelo próprio grupo parlamentar do PSD que, em sede de discussão na Assembleia há uns largos meses, adiantou que 66% dos alunos e alunas da Região têm ação social escolar, o que revela uma grande fragilidade financeira dos agregados familiares em que estão inseridos/as. Conforme constata Manuel Sarmento, investigador no âmbito da Sociologia da Infância que se tem debruçado sobre a pobreza infantil e políticas públicas para a infância, a pobreza das crianças resulta da pobreza da família a que pertencem, sendo que as famílias mais afetadas são as famílias monoparentais, as famílias mais numerosas e as famílias em que pelo menos um dos progenitores está no desemprego. Se estiverem os dois elementos, aquela família passa para o patamar da pobreza extrema.

A verdade é que muitas das nossas crianças vivem em condições que não são condignas e que interferem e condicionam o seu percurso até à idade adulta. Em fevereiro de 2021, a School of Business and Economics, da Universidade Nova, publicou um relatório que traça um diagnóstico quanto às condições de vida das crianças menos favorecidas no país e quanto às desigualdades educacionais que existiam antes da pandemia, e por isso os dados dizem respeito ao ano de 2019. O relatório «Crianças em Portugal e ensino à distância: um retrato», incluiu as Regiões Autónomas, e podemos constatar que a habitação condigna é um dos problemas que mais afeta as crianças da Região: 45,8% vivem em casas com telhados e estruturas húmidas ou mesmo apodrecidas. Igualmente grave é o facto de 19,2% das crianças da Região fazem parte de agregados que não têm capacidade financeira para comprar alimentos para refeições saudáveis e completas.

Obviamente, os fatores elencados são determinantes e vão influenciar não só o presente, mas também o futuro das nossas crianças que são as primeiras vítimas de uma organização política e social que está ainda assente numa realidade profundamente desigual onde, na maior parte das vezes, se confunde privilégio com mérito e se condena, sem qualquer remorso, uma grande parte das crianças a um futuro sem grande futuro.

Não será, portanto, de descurar o que tem sido defendido por Manuel Sarmento: um combate à pobreza infantil que seja verdadeiramente diferenciador tem de implicar, necessariamente, o combate à pobreza das suas famílias. Como tal, é necessário que adotemos políticas que garantam uma intervenção verdadeiramente transformadora no que diz respeito aos fatores de desigualdade que continuam a perpetuar os ciclos de transmissão de pobreza geração após geração. E talvez então consigamos simplesmente comemorar o Dia Mundial da Criança sem termos no horizonte todas aquelas a quem pedimos que traçassem as linhas de uma flor sem lhes garantir as ferramentas necessárias para conseguirem desenhar as linhas com que Deus faz uma flor.*

*Alusão ao poema A Flor,

de Almada Negreiros.