Crónicas

Em roda de uma imagem, o que ver?

Ando há muito tempo, há meses, a tentar escrever sobre esta fotografia da autoria de Francisco João Barreto que tem como legenda “retrato de grupo junto a uma roda de fiar, freguesia de Fajã da Ovelha, concelho da Calheta”, sem conseguir. Quando inicialmente vi a imagem e senti esse apelo, pensei que se devia à própria toponímia da Fajã e à possibilidade de investigar uma eventual relação da mesma com a atividade de fiar há cerca de um século atrás. Ou seja, da articulação entre a pastoragem de ovelhas e o fiar a lã naquela pequena localidade da Calheta. Posteriormente, pensei que poderia abordar a mesma do ponto de vista da produção de uma imagética fotográfica em torno de uma prática etnográfica a nível nacional e regional centrada na tipicidade e tipificação de fazeres e costumes. Mas, à semelhança daquele primeiro eventual ponto de partida para a leitura da imagem, também neste caso não tive oportunidade de fazer pesquisa. E não tive por falta de tempo, é certo, mas igualmente por, no fundo, nenhuma daqueles hipóteses constituir o cerne da questão para mim, ou ser, como afirmou Roland Barthes em A Câmara Clara, o punctum da imagem, aquilo que nela me pungia e feria de modo a me fazer falar sobre ela.

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Primeira quinzena do mês de março: uma série de três eventos com uma estreita relação entre si, e que de algum modo pode ser expressa numa palavra - feminismo(s). Lançamento no Funchal, no Teatro Municipal Baltazar Dias, do livro da autoria da jornalista Ana Cristina Pereira, Mulheres da minha ilha, mulheres do meu país: Igualdades que Abril abriu, ao qual, com muita pena, não tive possibilidade de ir; celebração do Dia Internacional das Mulheres na mesma data de sempre e com manifestações na timeline da rede social (talvez ainda) mais comum, não muito distintas daquelas a que me habituei em anos anteriores; espetáculo de teatro Antiprincesas – Carolina Beatriz Ângelo, protagonizado pela atriz Cláudia Gaiolas, naquele mesmo teatro, ao qual tive, felizmente, a oportunidade de assistir.

Na minha mente passaram então duas imagens. A primeira, a capa de uma mais ou menos recente edição do livro Novas cartas portuguesas, que originalmente data 1972 e, a curiosa (mas não exatamente surpreendente) constatação de que o livro de Ana Cristina Pereira, que entretanto adquiri mas não li, abre com uma citação do mesmo. A fundamental obra literária feminista e, natural e subsequentemente, crítica ao regime do Estado Novo, da autoria de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa foi, não apenas censurada pelo regime, mas também objeto de um processo judicial por ofensa aos costumes e moral do país. Tive oportunidade de em 2006 ou 2007 folhear todo o processo da censura que desemboca nessa ação penal, aquando de uma pesquisa académica sobre a censura à literatura durante o Estado Novo, a partir da noção de imoralidade sexual,. A minha hipótese, então, e partindo da etimologia da palavra obscenidade (aquilo que é colocando “fora de cena”) que a censura, ao querer colocar fora de cena o que julgava imoral, colocava ao invés em cena as palavras tidas como pornográficas e, portanto, obscenas. Enfim, sem entrar em detalhes, referia-se que essa prática foi particularmente verdade no processo que ficou conhecido como o das três Marias, as quais seriam absolvidas de todas as acusações já após o 25 de Abril, identificado por Ana Cristina Pereira como legado fundamental para a alteração das condições de vida das mulheres do seu país, Portugal, e, em particular, da sua ilha, a Madeira.

A segunda imagem é precisamente esta que aqui reproduzimos. O seu punctum: o olhar das mulheres ali retratadas, encenadas em torno de um suposto labor, mas de algum modo reivindicando uma serena dignidade perante a objetiva. E, sobretudo, a presença daquela mulher que segura a roca, em primeiro plano, curiosamente injustiçada pela profundidade de campo, (o foco recai nas personagens em segundo plano) mas, ainda assim, construindo uma visibilidade pela disposição do seu corpo e olhar, contornando a costumeira invisibilização do trabalho tradicionalmente desempenhado pelas mulheres, como este entretanto desaparecido da Fajã da Ovelha, o de fiar a lã.