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A Guerra Quimérica

Como a História o demonstra, a guerra é uma “arte” viva que nunca parou de evoluir. Foi uma ferramenta essencial na ascensão de impérios tal como o foi nos seus derrubes. E à medida que cada vez mais as tecnologias se desenvolveram, cada vez mais o ser humano se afastou do campo de batalha sem perder a capacidade de subjugar o seu inimigo. Por outras palavras, cada vez menos o guerreiro reconhece o seu oponente como um guerreiro e cada vez mais o vê como um problema a resolver. É devido a esta evolução do campo de batalha que em relação ao passado conseguimos identificar inúmeros heróis-guerreiros, mas em relação à modernidade, apesar de existirem, temos maior dificuldade em nomeá-los, ainda mais com as complicações éticas atuais que se colocam em atribuir a heroicidade a alguém que, para alcançar o seu objetivo, seja ele qual for, mata o seu semelhante.

Mas não foi apenas a nível da proximidade ao campo de batalha ou ao inimigo que a guerra evoluiu. As suas maiores mudanças relacionam-se com quem a combate e a forma como a combate. Enquanto que no passado o conflito armado era praticado por soldados e pelo elemento ou organização regente numa ação coordenada, agora, além de contar com esses elementos, a guerra é combatida por uma multiplicidade de agentes, cada um representativo da sua área de especialidade associada às tipologias de combate não armado, algo que assumiu no mundo lendário grego a forma de quimera. Num mundo ideal, na verdade, poderíamos imaginar que talvez estes desenvolvimentos orientassem a humanidade num caminho menos violento, mas não foi esse o resultado já que com este tipo de inovações também a linha entre o aceitável e o não aceitável tornou-se mais difícil de assinalar. A declaração de guerra deu espaço à declaração de hostilidade.

Como se sabe, na semana passada a Vodafone foi alvo de um ataque de um ou mais hackers associados a fóruns online russos, o que já levantou a hipótese de que possa ser uma demonstração de força por parte do governo de Putin provocado pelas tensões entre a NATO e aquela potência mundial. Nada está provado e, mesmo que alguma vez se descubra algum traço de influência governamental no ataque levado a cabo em Portugal, não será motivo de declarações, porque esta já se tornou uma realidade aceite no contexto internacional em que hackers estrangeiros começam a predar servidores de um determinado país com motivações para além das económicas.

No caso hipotético de esta ter sido uma ação coordenada por um governo estrangeiro, à primeira vista, as conclusões podem parecer relativamente positivas comparadas àquilo que se pode chamar de guerra convencional. Afinal de contas, foram hostilidades sem mortos nem feridos. Mas, quando analisamos o fenómeno com um olhar mais crítico, observamos aquilo que é a perversão dos princípios que, aos poucos e poucos, vieram a ser assumidos em tempos de guerra, nomeadamente no que diz respeito à proibição de ataques contra civis. Desta vez, já não são só os soldados que sofrem fisicamente a guerra, também os civis passam a ser alvos diretos das consequências desta.

Devido ao seu desenvolvimento e utilidade, as tecnologias digitais tornaram-se essenciais para a nossa vida em sociedade. Por isso é que também se tornaram objeto das novas formas de guerra não declarada que, pelo que revelam os seus efeitos, ainda não foram encaradas com a seriedade que a situação merece. Resta assim esperar que, com este novo foco de atenção, sejam desenvolvidas soluções eficazes que neutralizem qualquer guerra quimérica que se avizinhe. Venha ela de onde vier.