Crónicas

Como morrem os sonhos

Estava um lindo dia de sol, quente, glorioso, o contrário daquela bomba que acabara de ser lançada sobre mim, a minha família, os meus sonhos

O crachá estava perdido no armário grande da sala das visitas, onde ficaram esquecidos os livros, as cassetes com as músicas do Jorge Palma, fotografias e parte do que eu era antes de mudar de vez da casa do Laranjal. E quando o encontrei, ao crachá das eleições autárquicas de 1993, caíram as saudades em cima. Se me lembro daquele Dezembro chuvoso? Claro, tenho motivos para não esquecer, nunca esquecer, mas é difícil esquecer um tempo como aquele. Eu tinha 22 anos, era estagiária no jornal e aquela foi a primeira campanha eleitoral que me coube fazer.

E aos estagiários era costume dar um partido mais pequeno. O que me calhou já não existe, mas no início dos anos 90 fazia furor e conseguira até eleger deputados na Madeira e em São Bento. O povo chamava-lhe o partido dos velhinhos, dos pensionistas e foi esse que fomos fazer: eu, o Sérgio e o João, os outros dois estagiários da concorrência. Todos muito novos, com muitas ideias e certezas na cabeça, a tentar dar dignidade às reportagens, ainda que o espaço nas páginas dos jornais fosse pequeno e insignificante.

Nós acreditavámos que era só princípio, que viriam outras campanhas, talvez nos dessem mais importância. Ninguém sabia e, por isso, todos os dias nos encontravámos, bem dispostos. Lembro-me do João ser muito tímido, o Sérgio vestia-se de preto dos pés à cabeça, mais radical do que eu que, nessa altura, usava óculos redondos e não escondia o gosto por um estilo alternativo, entre o surrado, as botas Doc Martens e o que desencantava dos armários da casa das minhas tias.

Lia os jornais todos, comprava revistas e livros da Livraria Esperança e, apesar do jornal me ter posto a fazer a campanha eleitoral de um partido pequeno, eu alimentava os mesmos sonhos que tinha na faculdade. Quem sabe não acabaria a ser correspondente de guerra ou a cobrir as eleições americanas? Um dia, no futuro, seria possível. O futuro só me podia trazer mais e melhores oportunidades, não via outra maneira da vida seguir senão frente para um lugar melhor, mais vantajoso, um ordenado acima dos 80 contos que, nesse tempo, pagavam aos estagiários de 1º ano.

Era certo que, nos últimos dias daquela campanha, tinha sido tomada por um cansaço estranho, dóiam-me as costas e dera por um alto na clavícula esquerda, um caroço que não doía, nem desaparecia. As cores, aquelas cores que os rostos jovens têm, sumiram-se e eu intui que alguma coisa não estava bem. Seria passageiro, de certeza. As pessoas novas só podiam ter problemas de saúde leves e, por isso, quando me sentei a ler no quintal, no dia de reflexão daquelas eleições - o único dia em que os jornalistas não trabalham quando fazem a cobertura de partidos - não percebi o alcance do aperto no peito.

Nem tinha maneira de perceber, nem os médicos entenderam à primeira e foram necessários dois meses para ouvir o diagnóstico, já o ano mudara e os eleitos tinham assumido os cargos. A vida seguira em frente, já se festejara o Carnaval quando me disseram que, pelos menos por uns meses, o meu lindo futuro, a minha carreira de correspondente de guerra ou o que fosse que enfiara na cabeça teria de esperar. Não eram compatíveis com o linfoma, o meu Hodgkin, nem com tratamentos de quimioterapia.

Eu quis fugir, descer os andares do hospital que me separavam da rua e ir para o sol. Estava um lindo dia de sol, quente, glorioso, o contrário daquela bomba que acabara de ser lançada sobre mim, a minha família, os meus sonhos. Os tratamentos não podiam esperar, não me deram tempo. Um dia podia fazer a diferença e eles, os enfermeiros, as senhoras da secretaria, o médico, todos, queriam muito salvar-me. Não lhes acontecia muitas vezes, percebi depois, muito depois, quando me foi possível arrumar e enfrentar tudo o que aconteceu naquele ano.

E, por razões que não consigo explicar, guardei o crachá dessas eleições autárquicas, que me pareciam ser as primeiras de um percurso linear, de passo em passo até ao tal sucesso. Não foi assim. Quando consegui respirar, quando me disseram que estava livre do cancro, nem eu, nem o mundo estávamos iguais, mas tinham-me dado uma segunda oportunidade e corri para a agarrar. Um dia talvez voltasse para ver que, certa maneira, aquelas eleições autárquicas de Dezembro de 1993 foram o fim de um tempo despreocupado e inocente, em que podia sonhar e acreditar que seria correspondente no estrangeiro.