Análise

A lenda viva da ilha dos sonhos

Ao contrário de CR7, contentamo-nos com pouco, mas queixamo-nos de quase tudo

Cristiano Ronaldo voltou a Old Trafford como se nunca tivesse deixado esse “lugar mágico”, mediatizado como ‘teatro do sonhos’. Voltou como saiu, impactante. E nem foi por marcar dois golos logo na estreia desta segunda passagem, a caminho dos 800!, com os quais ajudou o Manchester United a bater o Newcastle, por 4-1, comprovando que nas zonas de finalização que bem conhece acredita mais do que os outros. Não foi pela exibição, pois já vimos o internacional português a fazer mais e melhor. E nem foi pelo ritual quase bíblico com que as famílias celebram o regresso a casa do “bom filho”. O madeirense voltou determinado. Em fazer a multidão feliz. Em desfrutar dos cânticos e dos aplausos em campo, no exercício pleno da profissão que lhe exige sacrifícios e rende glória. Em acentuar que o futebol espectáculo tem uma dimensão festiva sem paralelo na melhor Liga do mundo. Em confirmar que a aposta milionária dos clubes de futebol em estrelas geradoras de retorno são negócios à escala global que se pagam numa semana, apenas com a venda de camisolas. Pelo menos um dos filhos da ilha pisa com sucesso os grandes palcos dos talentos. Não é o único, mas é o líder nos golos, nas redes e nos ‘likes’. Devia ser motivo de orgulho e de gratidão, embora saibamos que alguma mesquinhez e cinismo, inveja e provincianismo tenda a exibir-se como alternativa ao mérito, para que assim possa ter assunto e ser falado.

O efeito colateral da lenda viva na desejada transformação do quotidiano insular tarda em ser realidade. Muitos dificilmente concretizam um sonho, um projecto de vida ou uma ideia disruptiva que renda milhões, e tal como Cristiano Ronaldo, são obrigados a emigrar. Outros, bem sucedidos graças ao trabalho e à inteligência, às oportunidades e à capacidade de resposta são tentados a procurar ambientes mais amigos do investimento. Alguns deixam-nos sem aviso prévio, fartos de impasses e de até de perseguições inexplicáveis.

A culpa é colectiva. Contentamo-nos com pouco, mas queixamo-nos de quase tudo. Toleramos práticas abomináveis, mas exigimos desculpas por distracções. Confundimos sobreviventes com heróis, e na hora de louvar e premiar, o perigoso equívoco permanece.

Etiquetamos com facilidade, mas detestamos argumentações fundamentadas. Apregoamos autonomia, mas optamos pelas dependências. Escondemos o jogo, mas pedimos transparência, de preferência aos já severamente expostos. Somos pela concorrência, mas ignoramos os poderes que durante décadas nos privaram de aceder a superfícies e serviços com preços a condizer com o nosso poder de compra. Queremos indiscriminadamente melhores salários, mas não medimos os impactos nefastos no custo de vida. Repudiamos os preconceituosos e os delinquentes, mas deixamos que continuem a fazer das suas, sem reparo, nem pena. Pedimos celeridade em diversas frentes, mas empatamos quando urge decidir, burocratizamos na hora de agilizar, complicamos o que é fácil e insistimos nas perguntas na hora de dar respostas.

E nem mais uma campanha eleitoral põe cobro a um défice estrutural com décadas, que impede a afirmação pela positiva dos que se submetem ao soberano veredicto popular, como se quem vota não tivesse vontade própria, não pensasse ou fosse facilmente corruptível.

Numa sociedade que tem dificuldade em reconhecer os melhores, os que têm currículo e obra e elevada probabilidade de acertar mais vezes do que errar há uma larga margem de actuação destinada à promoção da qualidade transversal e de treino para o mérito. Se até o exercício pedagógico de dar notas aos candidatos autárquicos se revela um problema existencial e um reles contributo para a má vizinhança política está tudo dito. Talvez também por isso, ontem, por instantes, imaginei caras e posturas de adeptos que todos conhecemos se porventura Cristiano Ronaldo regressasse a casa, ao Andorinha ou ao Nacional. Não gostei nada do que ‘vi’.