Crónicas

As tralhas

Agora que nos cabe arrumar a tralha compreendo que a herança inclui sempre papéis, burocracias nas finanças e no registo

O meu pai gostava muito desta casa. Lembro-me de estarmos os dois na paragem e de me dizer que era tudo o que tinha, trabalhara para erguer aquelas paredes e para todos os acrescentos que fez depois. O que começou por ser uma casa de duas janelas e uma porta acabou num emaranhado de anexos, a maioria sem lógica.

Houve um tempo que, na cabeça dos meus pais, tudo isto teve sentido, pareceu-lhes bom e bonito. Quem vier depois talvez diga o mesmo de mim, que acumulei coisas sem sentido. Agora que nos cabe arrumar a tralha compreendo que a herança inclui sempre papéis, burocracias nas finanças e no registo e, claro, um legado de entulho. E aqui estou sem saber por onde começo.

Se pelo mato que, em menos de seis meses, nasceu na fazenda, se por uma pintura nas paredes e um arranjo aos móveis. O meu pai costumava dizer que, houvesse vontade, e não faltaria o que fazer. O mal é que nos fizeram meninos da cidade e andámos a empurrar o momento. No próximo fim de semana, nas férias, um dia destes.

À luz do sol do verão percebo que, na verdade, não foi só por preguiça, nem pela rotina que, em certas semanas, engole dias e tira espaço até para pensar. A morte do meu pai doeu por debaixo de toda a lógica e do tempo que tivemos juntos, do adeus que nos foi permitido fazer sem dizer que era isso, que as nossas tardes a ver o Preço Certo seriam as últimas.

Eu não tinha ilusões, estava doente, velho e cansado e só por brio se mantinha quase como antes. E quando se foi, não quis, não quisemos, meter a cabeça no que deixou para trás. Um dia talvez aqui se faça uma casa nova, moderna, pensada de raiz, mas um dia é um futuro difuso. Por enquanto, temos as galinhas, o cão, o jardim e a nossa velha casa desconjuntada e é preciso cuidar e tratar com carinho.

Uma demão de tinta ajuda, limpar o mato também. A ideia é que, lá mais para o fim do verão e antes das primeiras chuvas, se possa aqui sentar no alpendre e apreciar a tarde que, cá por cima, continuam a ser tão silenciosas como na adolescência. E se possa olhar o jardim limpo, a casa caiada e o Tonecas sentado aos pés. O meu pai ia gostar.