Crónicas

Tecni-color II

FOTOGRAMAS

Falei de fotografia a cores a semana passada e do autochrome enquanto técnica primária de materialização de uma imagem fotográfica a cores – e não mera coloração de uma imagem a preto e branco –, referindo-me à “precocidade” deste processo, na medida em que data de inícios do século XX, mais precisamente, de 1907. Trago hoje por isso duas reproduções de autochromes do atelier Vicente’s e uma de uso do processo Paget, da autoria Photographia Perestrellos. “O processo Paget era igualmente um processo aditivo de síntese das cores, e foi patenteado em 1912, por Geofrey S.Whitfielci. Apresentava alguns melhoramentos em relação ao Autochrome, nomeadamente, quanto à maior rapidez de sensibilização, por permitir a reprodução de positivos a partir das placas negativas e pelo seu mais baixo custo. Contudo, problemas no acerto entre a imagem monocromática matriz e as placas de cor podiam provocar erros na representação das cores (…)”, referem Emília Tavares e Alexandra Encarnação, de novo, nos textos que acompanham uma reprodução destas imagens no estúdio do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.

Além da cor, o que é comum a estas imagens (que podem ir) até 1920? Serem imagens com flores, (ou) de flores. O que não é de estranhar, visto estas serem um ótimo objeto fotográfico para técnicas que destacam a cromia e que exigem grande imobilidade por parte daquilo que está a ser fotografado. Por outro lado, escolher flores como temática não é algo que a um nível geral seja de estranhar a nível regional; a Madeira é (e era) conhecida pelas suas lindas flores e jardins que tanto encantam (e encantaram…) um olhar simultaneamente local e estrangeiro – há autochromes de flores feitos aqui também por Auguste Leon que estão hoje na renomada coleção “Archives de la Planète” de Albert-Kahn, que na sua totalidade conta com mais de 70 000 exemplares de autochromes captados um pouco por todo o mundo; e imagens de processo Paget de Sarah Acland, que hoje se encontram no Museu da História da Ciência, em Oxford.

A semana passada destacava, (citando ainda Emília Tavares e Alexandra Encarnação), que as primeiras experiências para desenvolver a fotografia a cores remontavam a 1868, mesmo que a viabilidade de uma aplicação comercial ou industrial da “cor” apenas se vislumbrasse quase quarenta anos depois (através das placas de vidro com tricomia do autochrome, pois). O desejo de cor parece ser portanto contemporâneo de uma certa estabilização a nível técnico/comercial de uma indústria fotográfica, o que se dá a partir da década de 1860. Mas apesar de agora o afirmar, referia então que durante muitos anos e até há relativamente pouco tempo tive a impressão algo difusa que a fotografia a cores datava de praticamente um século depois dessas primeiras tentativas. E não obstante estar obviamente enganada, isso teria alguma razão de ser. De facto é na década de 1970 que a fotografia a cores se populariza por um lado como prática social (doméstica, vernacular), o que corresponde igualmente a uma exponencial produção de imagens de “amadores”, visto um muito maior número de famílias possuir então aparelhos fotográficos de fácil manuseamento. Ao nível de uma prática artística e fotográfica autoral, fotógrafos americanos como Stephen Shore e William Eggleston, começam a fazer um expressivo uso da cor nas suas produções e, nomeadamente, através do género mais instantâneo da street photography. O que é curioso é pensarmos que tudo isto funciona também de algum modo “ao contrário”: que se a técnica se situa numa época esta última acaba em última instância por ser moldada por aquela. Por exemplo, tendo o autochrome tido uma aplicação relativamente pertinente na documentação da I Guerra Mundial, essa época “habita” o nosso imaginário a preto e branco, restringindo-se em grande medida às nuances e variações da escala de cinzentos. Já a fervilhante década de 1970 remete-nos para as intensas e vivas cores da Polaroid, do diapositivo (slide) e dos negativos a cores da gama Kodacolor, em imagens onde não raras vezes a própria câmera fotográfica está presente (fotos de alguém a fotografar)! O que se sugere então assim? Que o nosso imaginário histórico e a nossa memória coletiva e pessoal são indelevelmente marcados pelas técnicas visuais que foram fruto dessa mesma época. E daí que só alguns dos nossos mundos (mentais) funcionem a cores.

Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.