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O maior inimigo da democracia - a pobreza

Os menos favorecidos não querem esmola, querem dignidade e têm direito a ela

Já vos falei, no meu último artigo, de uma das mais recentes obras do Papa Francisco – “Sonhemos Juntos”.

Esta obra que é uma autêntica epifania, uma chamada às armas, e uma leitura deliciosa. É o Papa Francisco no seu eu mais pessoal, profundo e apaixonado. Com este livro e com os corações abertos, podemos mudar o mundo.

Com ele aprendi que o nosso maior poder não é o respeito que os outros nos têm, mas sim o serviço que podemos oferecer aos demais.

Assim foi quando no exercício das minhas funções de Presidente da Segurança Social na Madeira lutei para pôr em prática um plano inspirador e exequível para construir uma sociedade melhor que colocava os pobres no cerne de uma nova maneira de pensar.

Em tempos de crise moral, ética e sanitária recordo esses momentos com angústia e pesar pois foram difíceis e de consequências pessoais devastadoras porque em política o preconceito não se vence com o pensamento e a linguagem é retrograda.

O estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos divulgado no passado mês, traz-nos o retrato muito negro da situação da pobreza em Portugal em 2018 e perante esta situação pergunta-se: foi esta política social virada para os mais pobres? Todo o esforço (ou propaganda) que se desenvolveu resultou num quase nada? É extraordinário como se olham para estes números como uma fatalidade, sem os relacionar com o défice de crescimento da economia. O número daqueles que trabalham e, ainda assim estão no limiar da pobreza… são 10,8%. É imoral, inaceitável que quem trabalha não tenha rendimentos para uma vida que, apesar de modesta, se baste.

A pobreza herda-se e não basta ter um emprego seguro para se sair desta situação. Em Portugal, pelo menos 11% dos trabalhadores são pobres, apesar de terem trabalho e salário certo ao fim do mês. Os trabalhadores pobres pesam 32,9%, ou seja constituem 1/3 total dos pobres, 16,2% da população que vivia com menos de 540 euros por mês em 2019 segundo o Instituto Nacional de Estatística. A maior parte desses trabalhadores pobres até têm vínculos estáveis, muitos há mais de 10 anos, alguns de 20 na mesma empresa.

“O ordenado destas pessoas é baixo, por volta do ordenado mínimo, ou ligeiramente acima do limiar da pobreza. Mas quando se divide este ordenado pelos membros da família, que, no caso dos trabalhadores pobres tende a ser mais alargada, toda a família é colocada em situação de pobreza”, diz o referido estudo.

E porque assim é? “Longe de ser um fenómeno individual, a pobreza é contextual. Estamos a falar de uma pobreza que se herda, que tende a ser tradicional e persistente na vida de um indivíduo, e que depois se conjuga com um problema sistémico que decorre da forma como a sociedade se organiza em termos de mercado de trabalho, e de distribuição de recursos, porque o Estado não consegue compensar as insuficiências do mercado do trabalho, para impedir que algumas destas pessoas sejam pobres”, segundo o mesmo estudo.

É da conjugação entre os baixos rendimentos do trabalho com uma estrutura familiar que tende a ser mais alargada que surgem esses trabalhadores pobres, cuja situação é ainda agravada pela “fragilidade da rede de segurança que o Estado proporciona”, nomeadamente na doença e no problema da conciliação entre trabalho – família.

A partir da análise de uma série cronológica dos indicadores de pobreza, a investigação permitiu desenhar pela primeira vez uma proposta de perfis de pobreza em Portugal: além dos trabalhadores pobres, os reformados, os precários e os desempregados. E, descontadas as diferenças, a grande maioria dos pobres surge como vítima de “um processo de reprodução intergeracional da pobreza”.

“Cresceram num contexto mais ou menos continuado de privação, o que condiciona, à partida, as suas oportunidades de vida, nomeadamente contribuindo para antecipar a saída da escola e entrada no mercado de trabalho e consequentemente em empregos pouco qualificados”, diz o estudo.

A saída antecipada da escola que aumenta e muito a probabilidade de ser pobre, decorre também ela da pobreza do contexto familiar, como precisa o referido estudo. “O abandono precoce da escola é transversal aos vários perfis de pobres, por razões que se prendem quase sempre com o apoio à família, seja para substituir uma mãe doente nas tarefas domésticas, um pai ausente, para tomar conta de um irmão deficiente ou de um avô acamado ou simplesmente para ajudar a ganhar mais algum dinheiro”. Seja qual for o motivo, o que está a montante é sempre a falta de dinheiro das famílias.

Mas há outros factores a jogar a favor da entrada na pobreza. São aquilo que os investigadores sociais chamam os três D: Desemprego, doença e divórcio.

Ao longo dos últimos anos, manteve-se a relação inversa entre o nível de instrução mais elevado e o risco de cair na pobreza. O estudo nota no entanto, que contrariamente ao que acontecia há alguns anos, ter um curso de nível superior já não é suficiente para assegurar a imunidade face a situações de pobreza. Quase 5% dos indivíduos com um curso superior encontravam-se em 2006 em situação de pobreza, numa circunstância a que não é alheio o forte aumento do desemprego jovem qualificado.

Entre muitas outras conclusões diz-se que uma boa parte das pessoas em estado de pobreza tende a relativizar essa disposição, como mecanismo de defesa psicológica, recorrendo a comparações com o seu próprio passado ou com outros em situações semelhantes. E há também, claramente, envolvido neste tipo de procedimento, a vergonha. E muitas vezes o sentimento de culpa. Uma acumulação de violências. É-se pobre. E é complexo falar disso.

Os menos favorecidos não querem esmola, querem dignidade e têm direito a ela. Vale a pena continuar a batalhar pela protecção social ou por um rendimento mínimo adequado que assegure uma existência decente para todos, mas, em simultâneo, quanto mais a própria ideia de pobreza se vai transformando e disseminando é preciso resolver nas lógicas reprodutoras que provocam desequilíbrios e desigualdades gritantes. Há muita gente que não está interessada nisso. Mas sem isso nada de essencial mudará.

Este, é um problema de sempre: a miséria esconde-se, é envergonhada; para a ver, para a entender, para a sentir, é preciso aproximar-se: não se conhece a miséria a partir da distância, é necessário tocá-la. Reconhecer e aproximar-se é o primeiro passo. O segundo consiste em responder de maneira específica e imediata: porque um acto concreto de misericórdia é sempre um acto de justiça.

Num dos seus últimos discursos o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa disse: “Desenvolvimento, liberdade e democracia, sempre foram imperfeitos. Nunca tendo resolvido uma pobreza estrutural de mais de 2 milhões de portugueses, desigualdades pessoais e territoriais que a pandemia veio a acentuar”.

Mas há o terceiro passo necessário, se não queremos cair num mero assistencialismo: reflectir sobre os primeiros dois passos obrigam-nos às reformas estruturais necessárias.

“Uma política autêntica desenha estas mudanças juntamente com e através de todos os actores respeitando a sua cultura e a sua dignidade. Só é lícito olhar para baixo quando estendemos aos outros a nossa mão para os ajudar a levantarem-se, diz o Papa Francisco em “Sonhemos Juntos”.

Somente um novo tipo de política que associe os recursos estatais com as organizações e instituições radicadas na sociedade civil, próximas dos problemas, poderá enfrentar estes desafios.

Precisamos de uma visão política que não seja apenas gerir o aparelho estatal e fazer campanha para a reeleição, mas capaz de cultivar a virtude e forjar novos vínculos. É preciso reabilitar “a Política” - com maiúscula, como gosto de lhe chamar: o serviço ao bem comum. É uma vocação sobretudo para os preocupados com o estado da sociedade e o sofrimento dos mais pobres.

A dignidade do nosso povo exige também corredores seguros para os emigrantes e refugiados, de modo que, possam viajar sem medo, de zonas da morte para outras mais seguras. É inaceitável deixar que centenas de migrantes morram em perigosas travessias marítimas ou em longas caminhadas pelo deserto ou sejam tratados no nosso país sem o mínimo de dignidade.

A miséria gera resignação colectiva e falta de ambições pessoais, cepticismo político e cinismo individual. Mais tarde no entanto, fará surgir uma ameaça revolucionária suficientemente credível para inquietar as “elites” e levá-las a rever as suas prioridades.