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Isto não é ficção

Passou uma semana sobre as eleições autárquicas quando me sento a escrever. Tenho muitos cabelos brancos e já me aconteceram muitas coisas – ilegais, arriscadas, todas de luta contra a ditadura de Salazar e o discurso ‘em família’ de Caetano.

Já fui atirada ao chão por um cavalo da GNR durante uma acção de repressão estudantil; já desmaiei junto ao Teatro D. Maria II na sequência de uma bastonada de um pide na parte de trás da cabeça; já lutei na rua contra a guerra colonial; já me partiram o nariz com um pontapé no antigo Instituto de Economia em Lisboa; já ajudei a preparar manifestações clandestinas, já pintei slogans de luta em paredes, já fugi da polícia de choque; já fui presa e estive com a minha filha bebé na prisão política de Caxias; já lutei na Academia de Lisboa e já experimentei um Dia do Estudante na Universidade de Coimbra; já senti a clandestinidade quando o meu marido teve que se esconder em casa de amigos porque fora denunciado por um estudante preso. Já tive uma pistola nas mãos porque, nas primeiras horas de 25 de Abril de 74, ninguém sabia o que podia acontecer. Já ouvi o assobio de balas em manifestações em Pinheiro da Cruz e Caxias, pela libertação de camaradas presos a 28 de Maio de 75, pelo COPCON. Já andei em Lisboa com um salvo-conduto, por alturas da tentativa de golpe de 25 de Novembro de 75. Já passaram por mim muitos anos de vida activa de intervenção como dirigente estudantil, como militante partidária, como mulher comprometida com causas.

Já vi eleições aldrabadas a que ninguém recusava chamar de farsas eleitorais. Mas nunca vi o que se passou este ano nas eleições de 26 de Setembro no Funchal.

Distribuição de frangos; entrega de raticida; centenas de contratações para a administração pública que acabam, indirectamente, por ‘comprar’ milhares de pessoas; ameaças e ‘conselhos’; passeios de casas do povo com almoço onde aparece ‘por mero acaso’ o candidato ‘certo e adequado’ que distribui, como se fosse amigo do peito de todos os passeantes beijos e abraços aos molhos; oferta de mochilas escolares – recheadas com propaganda adequada ao candidato ‘certo’; cabazes preparados com dinheiros públicos à custa de programas dirigidos para as casas do povo, a coberto da pandemia, foram agora distribuídos pelos ‘adequados’ candidatos às juntas, devidamente equipados. E passeios de automóvel de corrida para a boa mobilização da malta dos ralies. Não, não invento. Isto é só parte do que marcou o período pré-eleitoral.

No dia 26, em terreno de assembleias de voto, o despejar continuado durante horas de eleitores sem qualquer dificuldade de mobilidade (e muitos com um papel na mão) vindos em carros e carrinhas particulares, não requisitadas para o acto eleitoral; candidatos que ostensivamente se passeiam pelas salas de votação, metem a cabeça pela janela dos carros onde está gente que não conhecem em tentativa de induzir o voto; grupos que se dirigem a quem vem votar de forma quase intimidatória; mesmo quando a polícia é chamada e os identifica, rapidamente regressam à actividade proibida por lei. Provocadores que gritam alto e bom som, em plena assembleia de voto, Votem no Calado! e que rapidamente desaparecem em direcção a outra secção de voto; ex-dirigentes regionais a fazer campanha e a caluniar o adversário na entrada das secções de votos; gente que se passeia de lista na mão para confirmar que vota quem foi instruído para votar; presidentes de junta que descumprem a lei e ostensivamente se exibem. A pressão foi tamanha que por todo o lado se viam bandos de gente vestida com camisolas e máscara cor de laranja!!

Nunca vi ‘actos eleitorais’ assim. Nem no tempo em que mortos votavam, o número de votos expressos era maior que o número de eleitores descarregados, e uma urna passou a noite em casa do presidente da Junta, para impedir a queda da Câmara do Funchal. Nunca vi nada assim!

E nada disto é ficção. E nada disto tem a ver com democracia – aquela ‘coisa’ pela qual lutei toda a minha vida. Estas eleições não foram democráticas, não cumpriram as regras da democracia. E quem pensa que isto ‘é a democracia a funcionar’!, vai ter um desgosto. Isto é a lama sobre a qual se solidifica a prepotência.

É bom que tenhamos todos consciência que, mais do que de mau e prejudicial possa vir a acontecer à cidade do Funchal, o que aconteceu foi uma machada na democracia. E se achamos que esta é coisa de pouca importância, não choremos no futuro.

Por mero acaso, há pouco encontrei uma citação do meu pai que aqui reproduzo, de uma entrevista em 2007 «É tempo de uivar, porque se nos deixamos levar pelos poderes que nos governam, e não fazemos nada para contrariá-los, bem se pode dizer que temos o que merecemos».