Análise

Excessivamente vigiados

Cerco ao jornalismo faz-se de várias formas e nem sempre com polícia

Não são poucos os que recorrem a abomináveis expedientes na tentativa desesperada de amedrontar jornalistas ou condicioná-los no exercício de uma actividade constitucionalmente consagrada e comprovadamente respeitada por quem considera que a liberdade de imprensa e o direito à informação são pilares da democracia.

Conhecemos de perto algumas das estratégias e perseguições mais ou menos camufladas a que recorrem aqueles que temem os efeitos da exposição pública pelos piores motivos. Nem todas são mediáticas e controversas, embora sejam também atentatórias do exercício desta profissão, por si só fortemente legislada e escrutinada. A mais comum e legalmente enquadrada, a instauração de processos judiciais por alegada difamação, outrora abuso de liberdade de imprensa, fez-nos perder inúmeras horas em tribunais, tempo precioso que foi subtraído à informação, à investigação e à reflexão, mesmo que a inocência tenha sido amplamente provada.

Conhecemos de perto o receio, que julgávamos infundado, de algumas fontes, em connosco ter conversas em espaços públicos, em fazer telefonemas porventura sob escuta, em fornecer documentos e provas, em sentar-se à mesma mesa e em serem vistos num qualquer momento com jornalistas. Temiam ser apontados como denunciantes sempre que as notícias agitassem as águas. Tinham medo da sombra.

Convivemos com o requinte da malvadez. Com os recortes pidescos enviados para administradores com pressões a sugerir depurações no topo da estrutura editorial. Com o insulto em comícios políticos. Com fotografias à conversa com decisores, publicadas em muros de lamentações e nas sarjetas digitais dos escorraçados do regime por vontade popular. E com as deliberações insensatas: não há muito tempo houve quem no poder vedasse conteúdos a alguns jornalistas não alinhados.

Conhecemos e cumprimos as recomendações de recato social, limitações que nos lesaram enquanto cidadãos, por vezes, vistos como os únicos culpados do caos colectivo. Houve tempo em que sair à noite era um convite à pancada a aplicar pelos desejosos dos ajustes de contas e ir a um determinado estádio uma provocação deliberada. Para nós, o moderno ‘fique em casa’ vem de longe, desde o tempo em que cobardemente e através de chamada telefónica me aconselharam a passar a ir buscar os meus filhos à escola “antes que” ou tentaram matar este projecto editorial que resistiu a um sufoco medonho não sem custos para muitos profissionais.

Conhecemos os termos de identidade e residência. Ainda na semana passada soube ter sido constituído arguido porque, imaginem, alguém citado numa notícia, por um terceiro devidamente identificado na mesma, se sentiu lesado. Já fui julgado após meses de demoradas diligências por apenas ter cumprido a lei eleitoral, antecedidos de indiscritíveis inquéritos psico-sociológicos. Até hoje nunca fui condenado.

Com a pandemia, agravaram-se estes e outros ódios e ameaças, nada que nos desmotive nem tire o sono, sobretudo por termos a nítida sensação que o pior ainda está para vir. Nem de propósito, esta semana ficamos a conhecer outras manobras, por via dos factos e das reacções ao caso da vigilância a jornalistas por agentes judiciais e policiais, numa clara violação do seu sigilo profissional e da protecção das fontes de informação. Situações agravadas porque oriundas de quem está farto de conviver com os violadores do segredo de justiça, norma que teima de forma hipócrita preservar quando está causa o interesse público, manietando jornalistas que cruzam dados processuais, ouvem as partes, investigam pistas e partilham informação relevante.

Os ataques à liberdade de imprensa vão sempre continuar. Está no sangue dos que convivem mal com a verdade. Urge portanto proteger o jornalismo desta espionagem ancestral perita na devassa da vida privada, pois sem fontes credíveis de informação, devidamente protegidas, não é possível sobreviver nesta selva, a menos que nos queiram converter em meros correspondentes dos perfis falsos que plantaram nas redes. Por isso, mais do que indignação e solidariedade, precisamos de liberdade sem preço a pagar.

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